Mestres antigos

Tenho um pouco de bronca de quem reduz o estilo de Thomas Bernhard a algo comum, banal, usando expressões como “técnica monótona”, “voz repetitiva”, “enredo de pouca ação”, ou qualquer coisa nesses termos. Qualquer coisa pouco imaginativa e mimada por pilhas de literatura comercial e música pasteurizada (bem como nos cabe ser neste século de inteligência artificial e Amazon Day – aproveito para esclarecer que amo o Chat e só estou em paz quando há uma caixa Prime viajando até mim. Certamente não me excluo da multidão dos consumidores com expectativas devidamente moldadas; eu seria a primeira a ser aniquilada por Bernhard). Dizer que Bernhard é “cansativo” é como sobrevoar os Andes nevados e dizer assim: ah, mas isso é só pedra e gelo. Ou ver a torre Eiffel e dizer: ah, parece o chaveirinho que tenho em casa. Enfim. Nem tudo é só uma questão de “gosto”, às vezes é simplesmente uma questão do olhar.

Mas acabei de reler Mestres antigos e talvez esteja soando mais ranzinza do que realmente sou (sou ranzinza). Bernhard (através de Reger, através de Atzbacher, num jogo de vozes que por si só é uma brincadeira divertida do ponto de vista narrativo) não perdoa ninguém. É hilário. O fuzilamento hiperbólico de Bernhard é de um virtuosismo verdadeiramente bachiano: ele apresenta um tema e o usará para fuzilar a Áustria, esse país que nos deu tanto Mozart quanto Hitler, e por extensão toda a humanidade, em variações vertiginosas que só se resolverão num terceiro e derradeiro movimento. Ele explora seu tema até o esgotamento das variações possíveis (um jeito positivamente germânico de se fazer arte, convenhamos).

É tudo um truque, claro (assim como um concerto é uma sequência de truques complexos, em última instância). Os livros de Bernhard são parecidos entre si: longuíssimos parágrafos, às vezes da primeira até a última página (o cúmulo!), um narrador que é um homem branco a discorrer sobre o mundo a partir de um evento central e a Áustria como cenário, tudo embrulhado numa prosa que é frequentemente engraçadíssima e me faz perguntar se Bernhard gargalhava ao escrever certos trechos. Em Mestres antigos ele investe contra Heidegger, por exemplo: “Foi um homem desprovido de toda e qualquer inteligência, sem nenhuma fantasia, carente de toda sensibilidade, um ruminante protoalemão da filosofia, uma vaca filosófica constantemente prenhe”.

Em seus disparos contra tudo e contra todos (“nada me atrai mais intensamente que as pessoas e, ao mesmo tempo, nada me repugna mais fundamentalmente do que elas”), encontramos o riso, certa indignação, claro (afinal, investir contra os próprios pais, a própria infância, aniversários?), mas também (e principalmente) verdades sobre a condição humana. É nesses momentos que Bernhard brilha e se coloca acima do platô ocupado por milhares de escritores medianos. Quando nos mostra, através de suas caricaturas, que “tudo, simplesmente tudo, não passa de uma caricatura.”

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).