Considerações sobre o Oscar, o cinema brasileiro e o cinema, simplesmente – por João Teixeira

A 97ª edição do Oscar foi histórica para o cinema brasileiro. “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, conquistou o prêmio de Melhor Filme Internacional, marcando um dos momentos mais emblemáticos da presença do Brasil na história da premiação.

“Ainda Estou Aqui” é um filme de uma sensibilidade rara. Consegue retratar um período sombrio da história recente sem perder de vista a dignidade e a humanidade de seus personagens. Com essa obra, Walter Salles reafirma sua capacidade de contar histórias universais, tal como fez em “Central do Brasil” (1998). Esse é um filme que atravessou o mundo, emocionou audiências e mostrou o poder do cinema brasileiro em sua forma mais pura. Mas, mesmo atingindo esse patamar, a obra não foi suficiente para guiar a qualidade das produções brasileiras de forma consistente ao longo dos anos. Ainda fazemos cinema com paixão, mas não com estrutura.

Walter Salles tem o luxo de fazer cinema com um acesso que a grande maioria dos artistas brasileiros nunca conhecerá. No Brasil, a realidade é outra. A cada novo projeto, muitos cineastas vivem na incerteza, atualizando sites de editais na esperança de uma oportunidade. E, enquanto grandes diretores brasileiros buscam parcerias internacionais para continuar criando, a indústria nacional segue carente de mecanismos que garantam uma produção cinematográfica mais robusta e perene.

Ainda assim, ver um filme brasileiro conquistar um Oscar é motivo de orgulho. Apesar de “Orfeu Negro” (1959) ter levado a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro, o mérito acabou sendo atribuído à França, que teve o controle majoritário da produção. Desta vez, o Brasil celebrou uma vitória genuinamente nacional, trazendo a estatueta para o nosso país.

Por outro lado, a euforia desta noite maravilhada pela conquista deu lugar a um sentimento de desconforto ao testemunhar a reação de parte do público brasileiro à derrota de Fernanda Torres. A vitória de Mikey Madison pelo filme “Anora” de Sean S. Baker gerou uma onda de ataques online, com insultos e teorias de fraude dominando as redes sociais por parte da audiência brasileira que torcia pela vitória de Fernanda Torres. A jovem atriz, que sequer possui presença online, foi alvo de uma agressividade desproporcional e injusta. Essa reação reflete um problema recorrente: a dificuldade de aceitar derrotas em competições internacionais, seja no cinema ou em outros meios.

O desconforto veio também antes da premiação, durante o tapete vermelho, quando uma jornalista brasileira declarou: “chupa, Argentina” em tom de provocação, prevendo a vitória de “Ainda Estou Aqui”. Esse tipo de postura ignora um fato essencial: Argentina e Brasil possuem um respeito e admiração mútuos no campo das artes. O cinema argentino é um exemplo de organização e consistência, e tem muito a ensinar. Reduzir essa relação a uma rivalidade rasa é desperdiçar uma oportunidade de, cada vez mais, se tornar presente nesses ambientes de celebrações multiculturais.

O Oscar é, acima de tudo, uma celebração do impacto global do cinema, mas seu sistema de votação reflete inevitáveis vieses culturais. Assim como o Bafta é britânico, a Palma de Ouro é francesa e o Leão de Ouro é italiano, o Oscar é uma premiação essencialmente americana. Fernanda Torres estar entre as cinco indicadas já é um feito notável e deveria ser celebrado. Mas a incapacidade de lidar com essa distinção sem transformar a premiação em um campo de batalha virtual revela um problema mais profundo: a dificuldade de reconhecer o valor da participação sem que ela seja necessariamente uma vitória. A dificuldade de se permitir ser transformado pelas culturas.

O cinema tem o poder de atravessar fronteiras e conectar pessoas. Como diretor de cinema, sempre me senti profundamente inspirado por festivais e premiações ao redor do mundo, sejam eles americanos, europeus ou de qualquer outra parte. Não apenas para acompanhar tendências, mas para ser tocado por obras que carregam a alma de suas culturas. No entanto, sabemos que nem sempre é fácil ter acesso a esses filmes no Brasil. A democratização do cinema ainda é um desafio, e encontrar maneiras de assistir a produções internacionais exige esforço, curiosidade e, muitas vezes, sorte.

Foi assim que me deparei com “Touch”, do diretor islandês Baltasar Kormákur. Um filme que não apenas me emocionou profundamente, mas que abriu meus olhos para uma cultura e um país que passaram a ocupar um espaço especial no meu coração. Esse é o verdadeiro poder do cinema: ele nos permite viajar sem sair do lugar, compreender outras realidades e enxergar a humanidade compartilhada em cada história.

Por isso, essa celebração não é sobre uma vitória isolada. Não é sobre ‘chupa, Argentina’, ou qualquer tipo de rivalidade. O cinema é simples: é um espaço de união, onde artistas talentosos se conectam pela paixão de contar uma história. Porque há beleza nas histórias do Brasil, da Argentina, da Islândia, da Dinamarca… O cinema transcende língua, distância e cultura. Ele existe para transformar, desafiar e nos lembrar de que, no fim das contas, somos todos parte da mesma narrativa humana.

João Teixeira: Sou cineasta de primeira formação, economista de segunda e, eventualmente, ainda serei paleontólogo. Desde criança, me permito ser transformado e transportado pela arte cinematográfica e estou sempre caçando minha próxima história. Sou diretor de Constante (2022) e A Casa dos Esquecidos (2024). Podem me achar facilmente colocando dinossauros de brinquedo em filmes.

Assistam ao mais novo curta de João aqui:

falando sobre tudo, menos logaritmo.