O número 221 da revista piauí, de fevereiro de 2025, traz um apanhado de cartas de Eduardo Escorel (cineasta e montador de filmes como Terra em transe, clássico de Glauber Rocha), escritas no decorrer do ano de 1964. Escorel relata sua percepção do golpe, direto do olho do furacão, a seu pai, então funcionário da Embaixada do Brasil em Roma. Entre outras coisas, o cineasta descreve episódios tais quais a invasão da casa de Ferreira Gullar por militares, que apreenderam um livro que ele havia acabado de escrever, chamado “Do cubismo ao neoconcretismo”, conta Escorel, “por terem achado que cubismo tinha algo a ver com Cuba”. Pois é.
Quando falamos sobre arte, literatura brasileira ou a sofisticação do cinema de Walter Salles, premiado com o Oscar no último final de semana (em uma cerimônia “cafona, masculina e norte-americana”, para usar as palavras de Lilia Schwarcz, o que não vem ao caso mas importa anotar), estamos falando sozinhos, na verdade. Do outro lado do precipício ideológico que nos divide, nesse que insistem em chamar de “direita e esquerda”, num verniz sociológico anacrônico e inexato, estão pessoas que inclusive se ressentem da intelectualidade e da ciência (e tivemos uma pandemia inteira como prova disso).
Claro que às vezes a ação importa mais que o intelecto. Exemplificando: o clássico questionamento rousseauniano sobre a moral intrínseca do homem é apenas um exercício intelectual inútil quando nos deparamos com casos como o do deputado Rubens Paiva, sequestrado e torturado até a morte no ano de 1971 por agentes do aparato repressor do estado de exceção que durou tempo demais no Brasil. Tempo demais: seus efeitos ainda se sentem de maneira aguda, uma horrorosa cicatriz no tecido social que teima em sangrar periodicamente. Quando um improdutivo deputado homenageia um torturador da ditadura no plenário do Congresso, por exemplo. Ou quando esse deputado, em entrevista à TV Cultura, faz apologia à tortura. Ou quando ele cospe na estátua de um colega que foi morto sob tortura. Ou quando ele pendura um cartaz em sua sala com os dizeres “quem procura osso é cachorro”, numa diabólica piada sem graça, em referência às famílias que buscavam os corpos de seus desaparecidos. Ou quando ele fala sobre metralhar pessoas e jogar os corpos na “ponta da praia”. Ou quando ele é eleito presidente da República, pinta e borda, e quase é eleito novamente.
Em “Do Contrato Social”, Rousseau argumenta que o estado natural do ser humano é de empatia e que a sociedade é o fator corruptor da nossa predisposição ao altruísmo. Hobbes já havia argumentado o contrário, que nosso estado de natureza poderia ser domado apenas por um Leviatã estatal, o que significa, enfim, que basicamente estamos desde o século 17 sem saber ao certo como responder, testemunhas da história escrita, fotografada e televisionada que somos, aos registros de crueldade organizada que atingem nossa sensibilidade média: como classificar a Inquisição Católica, os expurgos stalinistas e o Holocausto nazista no nosso catálogo coletivo dos Feitos do Espírito Humano?
No entanto, olhar para essa figuras fundamentais da filosofia moderna é sempre uma muleta para a mente que se dispõe a pensar sobre esses desmandos que inauguram novas escalas morais para o comportamento humano: saber que Rubens Paiva foi assassinado nos porões da ditadura por militares sádicos que pularam sobre o seu ventre até estourar suas vísceras e provocar uma irreversível hemorragia, de acordo com Marcelo Rubens Paiva em seu importante livro Ainda estou aqui, que deu origem ao filme de Salles, é assumir que essa possibilidade se apresentará à psique que se formará em cada bebê parido no mundo. Assim como cada célula contém todo o DNA, cada humano contém a humanidade. Ou seja, desde que Hitler existiu, Hitler existirá para sempre. Suas ideias jamais serão apagadas – Elon Musk se apressaria em concordar –, assim como sua existência no reino dos fatos.
Reino esse no qual Rousseau e seu exercício intelectual se estilhaçam: se a tortura institucional é natural ou não ao homem é uma questão irrelevante, diante da realidade material dos corpos torturados pelos tarados militares. O que nos resta mesmo é contar com momentos de lucidez que nos permitirão organizar regras razoáveis de comportamento humano. Ou seja, precisamos escrever leis melhores, construir instituições mais eficientes, identificar problemas e resolvê-los com inteligência. Eleger brutos mais ignorantes jamais será a solução.
A conclusão inevitável é a de que tudo passa pela educação: os seres humanos precisam ser educados quanto aos seus apetites e repreendidos quando não os controlam. Num pacto humano de princípios elementares. Que tipo de demônio possuía Ustra quando ele enfiava ratos em mulheres num interrogatório não é algo que importa; o que importa é que Ustra não foi punido pela sociedade e as gerações seguintes não foram suficientemente ensinadas que uma linha foi ultrapassada no momento em que essas perversões foram trazidas ao reino dos fatos. Se as pessoas tivessem sido devidamente educadas, o quase-novo-golpe de 2022/2023 jamais teria acontecido. E a educação, enfim, passa também pela sensibilidade desenvolvida pela boa arte. Vale frisar: não estou falando sobre a educação dos diplomas para dermatologistas dos Jardins, a educação que abastece as fileiras técnicas do mercado de trabalho em troca de bugigangas e honrarias do capitalismo tardio. Estou falando da educação de Gullar, da educação que mantém os Hitlers possíveis no reino do irreal.
Assistir à premiação de I’m still here na noite do Oscar foi satisfatório no sentido de que a história de Rubens Paiva e sua brava esposa Eunice Paiva (vivida de maneira exata e comovente pela genial Fernanda Torres, ganhadora do Globo de Ouro de melhor atriz) ecoará mais alto e por mais tempo. E isso só pode ser educativo para a humanidade em geral e para o povo brasileiro em particular. Como disse Selton Mello em coletiva de imprensa após o Oscar, ainda em Los Angeles: os sensíveis foram premiados. Vamos sorrir!

