“Passar um tempo em Miami é adquirir certa fluência em dissonância cognitiva”, afirma Joan Didion no nono capítulo deste livro que nos leva a uma camada diferente daquela famosa Miami da superfície, a do veraneio de endinheirados. A tal dissonância começa pelo idioma: ao andar pela cidade, não é difícil perceber que a maioria dos atendentes do comércio e dos serviços falam inglês como segunda língua. Às vezes, nem falam. Fui a uma lanchonete Subway em Miami Beach e o rapaz me atendeu apontando os ingredientes de forma inquisitiva enquanto montava o lanche. Em Little Havana, é melhor mesmo falar em espanhol com qualquer pessoa do outro lado do balcão. Não comprei nem uma garrafa de água em inglês. Sequer um Uber.
Publicado originalmente em 1987, o livro de Didion começa com a palavra “Havana”. E, a partir daí, através da prosa refinada que consagrou a escritora estadunidense, joga luz sobre a questão do exílio cubano. A distância entre Havana e Miami é de cerca de 360 quilômetros (ou seja, mais perto do que Campinas do Rio). Existe uma verdadeira Cuba no coração da Florida, todo um grupo de pessoas que vive uma situação de saudades e exílio da pátria. Não estou nem falando do bairro latino, mas de Downtown, Miami Beach, Sawgrass, Wynwood. Num contexto desses, a língua acaba sendo uma das instâncias de resistência, ainda mais numa cidade que exibe em seus spas à beira da praia os maiores conflitos do capitalismo: só é possível que exista um grande resort cheio de pessoas que sirvam champanhe e tragam a toalha a senhoras mandonas porque existe quem precisa fazer isso para ganhar um salário. O luxo não poderia existir sem a miséria, e Miami reflete essa verdade orgulhosamente do alto de seus prédios espelhados.
Uma cidade linda construída por imigrantes e exilados (para qualquer lado que se olhe, há alguém com uma furadeira ou uma chave de fenda fazendo um reparo em alguma estrutura), Miami é de fato um exercício de dissonância e este livro de Didion é uma excelente leitura para tentar captar exatamente isso.