The Talented Mr. Ripley

“Se você quisesse ser alegre, ou melancólico, ou nostálgico, ou pensativo, ou cortês, bastava agir dessas maneiras em cada gesto.” A certa altura de O Talentoso Ripley, nosso protagonista detestavelmente angelical, diabolicamente amoral, reflete sobre como proceder em seu projeto tortuoso de se tornar outra pessoa. As linhas gerais do enredo da obra-prima de Patricia Highsmith, publicada em 1955, são conhecidas: Tom Ripley mata o ricaço Dickie Greenleaf e vai usufruir de sua fortuna se passando por ele. Os vaivéns da sorte de Ripley (o livro, inclusive, poderia se chamar O Sortudo Ripley, mas Highsmith certamente escolheu o adjetivo “talentoso” para poder rir junto conosco) compõem um dos mais engenhosos e sarcásticos livros do século 20. Os processos mentais do nosso anti-herói são explorados de maneira complexa e profunda através de um estilo direto e cristalino, e os eventos são concatenados com tal habilidade que, no fim das contas, involuntariamente torcemos para que ele não seja pego em seus crimes. Somos cúmplices inadvertidos de um sociopata que mal pode ser chamado de cativante. Esse é um truque muito interessante.

Nesse sentido, Matt Damon faz um bom trabalho no filme de 1999, com direção de Alfred Minghella: seu Ripley não tem o menor charme; de fato, chega a ser repugnante em alguns momentos. Ainda mais diante de um ofuscante Jude Law no auge de sua carreira de galã. No entanto, foi Andrew Scott, na nova série da Netflix, de Steven Zaillian, quem melhor capturou a essência perversa de Tom Ripley. Apesar da idade (Tom tem 25 anos – Matt Damon tinha 29 quando o filme foi lançado, em 1999 – e Scott já tinha completado 48 quando encarnou o personagem), o ator inglês comunica os pequenos tiques e reações de Ripley nos momentos de maior tensão com uma minúcia que falta a Damon. Talvez, inclusive, até por causa da idade – aquilo a que chamamos de experiência.

O ritmo da série, apesar de mais lento, quase arrastado para os padrões das produções freneticamente visuais da nossa época, faz mais justiça ao do livro do que o longa-metragem com seu traje hollywoodiano que se dá ao luxo de inventar um quase romance de Ripley com uma bela e glamurosa Cate Blanchett – maravilhosa mas desnecessária. O filme bola transposições mil: Dickie é um saxofonista mulherengo, ao invés de um pintor amador introvertido de sexualidade conflituosa. Gwyneth Paltrow faz o papel de uma noiva enlouquecida por saber a verdade, enquanto, no fundo, tudo o que foi feito para preencher as telonas de cinema foram tentativas de amplificar o que no livro reside nas frestas das ações, do não-dito, do quase-cômico, do riso nervoso. São transposições possíveis e que funcionam bem, mas miram um público impaciente a ser entretido no espaço de 120 minutos, no final das contas.

Enfim. O longa-metragem de 1999 (nota 7.4 no IMDb, contra 8.1 da série de 2024) dá suas piruetas a fim de levar nosso detestável protagonista através dos meandros de sua sorte, traduz tudo o que é possível a fim de reproduzir a tensão constante nas 288 páginas do livro, mas Steven Zaillian entende melhor que a obra-prima de Highsmith pede para ser contada visualmente como uma espécie de mel noir de suspense escorrendo lento em frames lindos e tomadas demoradas de um preto e branco no limite do contraste.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).