Quando chegamos em frente à casa que Santos Dumont manteve como residência de veraneio em Petrópolis, quase não consumamos a visita pois estávamos exaustas de uma tarde inteira no Museu Imperial. O tour pelo palácio de Pedro II é obrigatoriamente feito com um par de pantufas distribuídas na entrada, o que favorece tanto a conservação do piso de madeira nobre quanto o exercício dos quadríceps dos visitantes – a experiência de andar arrastando os pés por mais de duas horas lembra muito uma boa sessão de elíptico na academia.
Felizmente, vencemos o cansaço e subimos. Carinhosamente apelidada de A Encantada, a casa foi construída em 1918 no chamado Morro do Encanto e só pode ser acessada ao fim de uma escada íngreme de estreitos degraus em forma de raquetes – pelo que se sabe, Dumont era muito supersticioso e por isso a primeira raquete do lance se oferece em apoio ao pé direito, para que só assim se inicie a subida.
A curiosa construção, vertida em museu pela municipalidade de Petrópolis em 1956, é tanto um tributo a um homem excepcional quanto uma coleção certamente semelhante à mente de seu arquiteto: móveis de tamanhos pouco convencionais, um engenhoso chuveiro de água quente parecido com um abajur invertido, uma perigosa escada até o telhado, tão desafiadora da gravidade que mais parece uma corda bamba, um quarto de dormir num estreito mezanino, um telefone (à época, uma engenhoca rara) conectado ao hotel em que ele encomendava suas refeições (não há cozinha na casa). A excentricidade do proprietário é visível em cada detalhe, e é possível ver de perto também correspondências, maquetes e o inconfundível chapéu do pai da aviação.
Asas da loucura – A extraordinária vida de Santos Dumont, do jornalista americano Paul Hoffman, que recebemos da editora Record alguns meses atrás, foi um grato presente e uma das biografias mais interessantes que já tive o prazer de ler. Eu, que nunca havia pesquisado sobre Santos Dumont além daquele pouco conhecimento compulsório que todos os brasileiros têm sobre o mais romântico dos nossos inventores (tão romântico que nem é reconhecido como o inventor do avião por ninguém além de nós), cheguei ao fim do livro completamente fascinada por essa figura singular.
Nascido em um local remoto de Minas Gerais em 20 de julho de 1873, Alberto Santos Dumont foi o sexto dos oito filhos de um casal que enriqueceu construindo estradas de ferro para Dom Pedro II. Posteriormente, a família se estabeleceu em São Paulo como proprietária de grandes fazendas de café. Por conta dessa situação de privilégio, depois da morte de seu pai, Alberto pode se mudar para Paris em posse de uma fortuna que o desonerou da árdua tarefa de trabalhar para ganhar a vida. Com isso, ele teve tempo e recursos para direcionar seus talentos e interesses à obsessão de voar. Desenhou e construiu balões e modelos que culminaram no célebre 14-Bis, cuja decolagem foi testemunhada por uma multidão em polvorosa, em outubro de 1906.
Essas são as linhas gerais de sua biografia. Outras, menos propagadas, são ainda mais interessantes, como por exemplo: sua sexualidade era pauta constante nas rodas de conversas da época, já que ele não era casado, não tinha namoradas e ostentava roupas e maneiras ditas femininas. Hoje, provavelmente nos referiríamos a ele como uma pessoa “queer”.
Seu modelo Nº 9, conhecido como Baladeuse, era uma pequena e leve máquina voadora sustentada por um balão oblongo e ele o usava como um carro; voando pelos céus parisienses, Santos Dumont ia à compras, visitava amigos, jantava com a princesa Isabel, era imediatamente reconhecido e celebrado pelas pessoas que o viam quando ele passava no elegante aparelho que fez dele, provavelmente, o mais livre de todos os homens que já habitaram a capital francesa: nunca antes dele e também nunca desde então alguém se locomoveu pelos céus como quem vai de moto ou bicicleta.
Membro do prestigioso aeroclube de Paris, Dumont era uma verdadeira celebridade e também um pensador respeitado. Obviamente, os estadunidenses viram nos experimentos secretos dos irmão Wright uma narrativa mais ajustada à sua visão de mundo sobre a invenção das máquinas voadoras e depois passaram o resto do século XX impondo essa visão a um público cujo imaginário era inicialmente povoado pelo excêntrico brasileiro de 1,52m que realizava exibições espetaculares no coração da Europa.
É, inclusive, muito interessante que essa biografia tenha sido escrita justamente por um estadunidense. Como se para pacificar o que já foi pacificado, Paul Hoffman afirma que, sim, Santos Dumont é um dos pioneiros da aviação, mas Orville e Wilbur Wright são os incontestáveis inventores do aeroplano. É uma reivindicação justa, mas também é óbvio que a história seria escrita com a caneta do império, como é de praxe.
De qualquer maneira, até o fim da vida, Santos Dumont se sentiu responsável pela invenção. Quando o avião começou a ser usado para fins bélicos na Primeira Guerra, Dumont já sofria de esclerose múltipla e sua condição foi se deteriorando. A cada morte causada por bombardeios aéreos, ele sofria mais. É como se enlouquecesse à medida que assistia aos desdobramentos da invenção da máquina voadora, a única paixão da sua vida. Em 1932, se suicidou num quarto de hotel em um balneário no Guarujá.
Livro curto, de apenas 265 páginas, Asas da loucura é uma leitura hipnotizante. Senti falta apenas de um encarte de imagens, já que os modelos construídos por Dumont e a raridade dos registros visuais daquela época mereciam esse cuidado editorial.