“Tudo o que a linguagem pode registrar é o lento retorno ao esquecimento.” (p. 130)
Romance picaresco, poema épico, guia de viagem, diário, autobiografia, álbum de fotografias sem fotografias, escrito divinatório baseado em antigos fragmentos recuperados: em Autobiografia do vermelho, as barreiras de gênero são borradas assim como um vulcão borra os limites entre o interior e a superfície. Flashes de sabedoria e beleza poética se encontram num estranho caos em que a tradição do mito se funde à estrutura do pesadelo.
Mircea Eliade, em A estrutura do mito, afirma que os mitos “descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no mundo”. Para os yanomami, os sonhos têm papel fundamental na construção dos mitos que serão recontados na vigília. A canadense Anne Carson parece levar em consideração esse caráter limítrofe do mito, bem como a tendência das sequências míticas a trazer detalhes circunstanciais inexplicavelmente triviais (Gerião fala sobre a roupa suja, a luz no banheiro, a fruteira; na epopeia de Gilgamesh, Enkidu agoniza por doze dias antes de morrer) a fim de construir seu texto, repleto de possíveis significados.
Como se soubesse que, ao final de tudo, nenhum livro será mais que alguns poucos fragmentos, Carson cria seu universo de loucura vermelha – que na verdade parece um grande jorro imaginativo sem rédeas. Aqui, ao invés de “por quê?”, a pergunta é “por que não?”. Assim que me dei conta disso, me dei conta de que talvez a pergunta fundamental por trás de todo fazer artístico seja exatamente esta segunda.