Amares

Quando estive em Montevideo, capital do Uruguai e cidade natal de Eduardo Galeano, a presença do maior escritor desse país era notável no dia a dia dos uruguaios. Em uma visita ao Museo de La Casa de Gobierno, o segurança puxou conversa com a gente, e percebendo que éramos brasileiros, logo começou a falar sobre a situação política do nosso país. Conversa vem, conversa vai, entre escândalos de corrupção e algumas piadas sobre futebol, esse senhor uruguaio me perguntou se eu já tinha lido Las venas abiertas de America Latina e, por coincidência, era a minha leitura do momento. A partir daí foi mais uma meia hora de conversa sobre a importância de Galeano, não apenas para o Uruguai, mas para toda América Latina (de acordo com esse senhor, Las venas abiertas de America Latina deveria ser o livro de cabeceira de todo latino americano).

Num outro dia, fomos a Feria Tristán Narvaja – que é basicamente a rua com mesmo nome (e outras paralelas) fechada todo domingo com banquinhas onde se encontra de um tudo (desde papel higiênico e animais – pasmem – vivos, até edições maravilhosas dos maiores autores latino americanos). Uma das ruas dessa feira é, portanto, dedicada a banquinhas dessas belezas: tem algumas que funcionam no estilo sebo, e outras que vendem edições novinhas – e caras. Mas fato é que não só turistas, mas também muito uruguaios frequentam o local, que acaba servindo como um ponto de encontro de amantes da literatura.


Enquanto escolhia algumas edições incríveis para torrar meus pesos uruguaios – e tagarelava em português sobre as minhas dúvidas – um professor de história em uma escola pública de Montevideo se aproximou e disse que eu deveria escolher a edição de Borges: essencial, da Real Academia Espanhola, que era só alguns pesos mais cara do que as duas edições de El Aleph e Ficciones que eu tinha escolhido, assim, eu teria – como o nome já diz – o essencial de Borges (um dos deuses desse professor) por poucos pesos a mais. 

Já vou voltar para o Galeano (segurem aí só um pouco). Fato é que dois professores conversando sobre livros no Uruguai, inevitavelmente falamos de Eduardo Galeano. Mais uma vez, esse escritor foi colocado como – para repetir a palavra – essencial para qualquer latino americano que se preze. Isso porque, Galeano é o responsável por uma das análises mais minuciosas do processo de colonização de todos os países da América Latina e uma reflexão cuidadosa acerca das sequelas da dominação e exploração violenta desses territórios por, principalmente, Espanha e Portugal. Mas nem só de História vive o escritor mais famoso do Uruguai! Galeano deliberadamente borra as fronteiras entre gêneros e brinca com a divisão entre ficção e não-ficção. 

Essa transgressão de limites é notável na obra Amares, que começou a ser organizada por Galeano em 1993. Essa é uma compilação dos melhores textos do autor – de acordo com sua própria percepção – de 1973 até 1989. Para a publicação, em 2018, a edição argentina (da qual vem a tradução da L&PM para português) tomou a liberdade de acrescentar textos de seus outros livros, publicados depois de 1989. O resultado é um conjuntos de breves textos, dos mais variados gêneros e assuntos. Transcrevemos aqui alguns dos nossos preferidos:

A terceira margem do rio
Guimarães Rosa tinha sido advertido por uma cigana: “Você vai morrer quando realizar sua maior ambição”.
Coisa rara: com tantos deuses e demônios que este homem continha, era um cavalheiro dos mais formais. Sua maior ambição consistia em ser nomeado membro da Academia Brasileira de Letras. 
Quando foi designado, inventou desculpas para adiar o ingresso. Inventou desculpas durante anos: a saúde, o tempo, uma viagem…
Até que decidiu que tinha chegado a hora.
Realizou-se a cerimônia solene, e, em seu discurso, Guimarães Rosa disse: “As pessoas não morrem, ficam encantadas.”
Três dias depois, ao meio-dia de um domingo, sua mulher encontrou-o morto quando voltou da missa.

(Aqui você encontra informações sobre as datas de posse e morte de Guimarães Rosa, além do discurso proferido por ele na cerimônia.)

A função da arte/2
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar!

As cores
Eram brancas as plumas dos pássaros e branca a pele dos animais.
Azuis são, agora, os que se banham em um lago onde não desembocava nenhum rio, e nenhum rio nascia. Vermelhos, os que mergulharam no lago do sangue derramado por um menino da tribo kadiueu. Têm cor da terra os que se revolveram no barro, e o da cinza os que buscaram calor nos fogões apagados. Verdes são os que esfregaram seus corpos na folhagem, e brancos os que ficaram quietos.

Sou graduada em Letras e mestranda em Linguística (Unicamp) - Sociolinguística, mais especificamente. Sou professora de português e inglês, flamenguista nascida e criada em Campinas (SP), que adora fazer mala e viajar, mas odeia desfazer. Capricorniana… até demais.

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