Salinger nunca conseguiu se matar, mas criou Seymour Glass. Através dele, disparou um tiro na própria têmpora direita, num quarto de hotel na Flórida, num dia de férias ensolaradas, depois de brincar no mar com a recém-conhecida Sybil Carpenter, uma menina de quatro anos de idade. Seymour, que nunca tira seu roupão na praia por vergonha de uma tatuagem que talvez tenha feito no seu tempo no Exército, ou talvez por ser tão pálido, beija o pé da garotinha e sobe até o quarto, onde se mata na cama ao lado daquela em que sua esposa dorme. Este é basicamente o plot de “A Perfect Day for Bananafish”, o conto que abre Nine Stories.
Seymour Glass, “see more glass”, ou “ver mais vidro”, estilhaços: see more glass. Esse trocadilho aparece quando a menina Carpenter interpela Seymour, num jogo de palavras que é também um presságio. O mais velho dos prodígios Glass vai pairar sobre toda a coleção de escritos de Salinger e, apesar de Holden Caulfield ser o mais memorável de seus personagens, o âmago pulsante de sua criação certamente é o irmão suicida de Buddy. Além de ser mencionado inúmeras vezes em Franny and Zooey, há um volume dedicado inteiramente a ele: Raise High the Roof Beam, Carpenters (sobre seu casamento com Muriel, adiado por motivos de: o noivo não compareceu) e Seymour, An Introduction, em que Buddy, o escritor que é o alter ego de Salinger, tenta por quase cem páginas nos dizer tudo o que sabe sobre seu irmão. É um texto lindo, cheio de profundos insights sobre poesia e sobre a vida. Em um trecho de uma carta de Seymour a Buddy, lemos:
“Do you know what you will be asked when you die? But let me tell you first what you won’t be asked. You won’t be asked if you were working on a wonderful, moving piece of writing when you died. You won’t be asked if it was long or short, sad or funny, published or unpublished. You won’t be asked if you were in good or bad form while you were working on it. You won’t even be asked if it was the one piece of writing you would have been working on if you had known your time would be up when it was finished – I think only poor Soren K. will get asked that. I’m so sure you’ll get asked only two questions. Were most of your stars out? Were you busy writing your heart out?”
Publicada na New Yorker em 1959, a novela, apesar de já indicar um ponto de inflexão na produção de Salinger, não passa perto da vaidade gratuita demonstrada em 1965 com Hapworth 16, 1924, já que tem um caráter experimental mas ainda assim se prova penetrável e tocante. Hapworth, em que vemos um Seymour de sete anos a escrever uma interminável carta de insuportável precocidade, é uma peça que só pode ser lida na chave da crítica à ficção como um gênero em sua totalidade; nesse texto, Salinger demonstra sua capacidade de desmontar o gênero, fulminá-lo e desnudá-lo para além do limite da verossimilhança através de seu impressionante virtuosismo verbal. É uma espécie de renúncia – e não por acaso é o último texto que ele publica.
Seymour, An Introduction, no entanto, nos dá várias chaves para entendermos o universo salingeriano. Aqui, por exemplo, aprendemos que foi Buddy quem escreveu “Bananafish” e “Teddy”, o primeiro e o último contos de Nine Stories. E há ecos reais de Salinger por toda a novela: “after thirteen years of country living I’m still a man who gauges bucolic distances by New York City blocks”. Essa é basicamente a alma de Salinger em duas linhas. Nesse texto de “enchanting semi-diary form”, de “heart-shaped prose”, aprendemos que Seymour era um poeta que gostava de haicais. Buddy diz estar em posse de um caderno com 184 poemas escritos nos últimos três anos de vida do irmão. Diz que, na tarde de seu suicídio, Seymour escreveu um haicai, em japonês, na escrivaninha de seu quarto de hotel. Um haicai sobre uma menina em um avião que vira a cabeça de sua boneca para que ela encare o poeta.
Apesar desses ecos de Salinger serem o que mais tarde seus críticos viriam a reprovar nos fragmentos de Narciso que são Zooey e Hapworth, fato é que, quando esses ecos estão bem alinhados, a literatura de Salinger alcança níveis estéticos hipnotizadoramente poderosos: veja os infames Chapman, Hinckley, Bardo. Os biógrafos David Shields e Shane Salerno anotam: “A bala que penetrou o cérebro de Seymour em 1948 prosseguiu sua trajetória ao longo da história americana, vindo a atingir John Lennon, Ronald Reagan e outros. O Apanhador está de tal modo saturado de trauma de guerra que os sociopatas podem vê-lo, como se usassem óculos de raio-X”.
De fato, os temas de crianças e suicídios se repetem e se entremeiam com fragmentos da Segunda Guerra Mundial, o pesadelo do qual o sargento Salinger, oficial da inteligência, jamais acordou. Ele desembarcou na Normandia debaixo de fogo no Dia D, atravessou a floresta minada de Hurtgen e lutou na Batalha das Ardenas contra a fanática juventude de Hitler, atuando em uma subdivisão que regularmente reportava baixas de 75% de seus batalhões – episódios e mais episódios de massacres. Além dessa carnificina, Salinger, de ascendência judia, vale lembrar, participou da libertação do campo de concentração de Kaufering IV, sendo uma das primeiras pessoas do mundo a testemunhar, de perto, a total degradação da humanidade. Anos depois, Salinger diria que a escrita de The Catcher in the Rye foi o que o manteve vivo: o manuscrito que carregou consigo por quase três anos foi o que se interpôs entre ele e o abismo.
Ao fim da guerra, Salinger se interna num hospital psiquiátrico com transtorno de estresse pós-traumático e alguns meses depois se casa com uma alemã – que havia trabalhado para a Gestapo, como o noivo descobriu depois. O casamento dura poucos meses e Salinger passará o resto da vida cortejando jovenzinhas em plena adolescência. Vira o mais célebre de todos os reclusos. Consuma o sonho de Holden Caulfield e se instala numa propriedade semi-rural em Cornish, New Hampshire, já que não pode fazer o que Seymour fez. Nunca se livra da guerra, da fama, de New York, do hábito de escrever. Se recusa a publicar ou a vender os direitos de sua obra para os sedentos executivos de Hollywood. Vira uma criança Glass: um virtuoso do verbo em busca de iluminação, emporcalhando a sala inteira com cinzas de cigarro enquanto prega sobre pureza. Usa sua literatura para propagar sua própria visão de mundo, sua fé vedanta e, assim como Tolstói no fim da vida, vira uma caricatura de si mesmo por conta de seu fanatismo religioso. Nós, em nosso “enviable golden silence”, lemos as palavras de Buddy/Salinger: “Yet a real artist, I’ve noticed, will survive anything. Even praise, I happily suspect”.
Seymour morreu em 1948, aos 31 anos de idade; Salinger morreu em 2010, aos 91. A certa altura de Seymour, An Introduction, Buddy fala sobre o hábito do irmão de se entregar totalmente às atividades esportivas. Quando jogava pingue-pongue, por exemplo, Seymour costumava cortar todas as bolas em todas as jogadas; não havia vôleis tranquilos ou terceiras bolas, eram porradas atrás de porradas. Assim como no tênis, bolinhas de gude ou outros jogos que as crianças inventavam, Seymour já mostrava desde sempre essa inclinação para o tudo ou nada. Se em Hapworth ele já entrevia a própria morte, talvez seja justo dizer que tenha levado às últimas consequências a questão de Sísifo, posta por Camus em 1942: talvez o único problema filosófico sério seja mesmo o suicídio. “Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”, nas palavras do Nobel argelino.
Salinger, portanto, responde à altura com sua literatura e oferece o Glass primogênito em sacrifício; em vida, prefere se enterrar e, tal qual um faraó, leva consigo tudo o que pode. Matt Salinger, seu filho, trabalha desde 2011 nas pilhas de manuscritos jamais publicados que Salinger manteve num cofre até o fim. Segundo entrevistas dadas aos maiores jornais e suplementos literários do mundo, teremos novas publicações até 2030, mas o material aparentemente não é dócil à editoração. Quanto a Holden Caulfield, seu destino está selado: jamais será transposto para as telas devido a uma disposição expressa e inegociável do testamento de Salinger.