A extinção das abelhas

Não tenho dúvidas de que estamos testemunhando o colapso da civilização ocidental. Uso o termo “ocidental” para me referir à sociedade que aderiu febrilmente ao tipo de consumo imposto em escala global depois das grandes guerras do século 20 (e é claro que isso inclui a China, apesar da evidente atopia). Uso também o termo “colapso” porque a primeira das grandes extinções humanas que este século trará já está em pleno vapor: enquanto escrevo este texto, quase 5 milhões de vidas já foram ceifadas por um vírus que há quase dois anos nos mantém em clausura. Isso sem contar o colapso moral que dá nova vida a discursos segregacionistas de gângsters populistas em plena era da informação e, finalmente, ao colapso do ideal vitoriano de progresso, em que cada descoberta científica leva inevitavelmente ao aprimoramento – ideal que não tem lugar no mundo pós-moderno que gesta, a olhos vistos, um desastre ambiental de proporções diluvianas.

O fim do mundo é assunto antigo. Ovídio já falava da “astuta natureza humana, vítima de suas invenções, desastrosamente criativa” (Amores, livro 3). Antes ainda, os sumérios já narravam sua epopeia de destruição da humanidade pelos deuses, como podemos ler no que chegou até nós do Gilgamesh. A Bíblia começa do Gênesis e termina no Apocalipse – este último sendo o destino final das criaturas de barro – e a certa altura da história, inclusive, o deus judaico-cristão se arrepende de ter engendrado a espécie humana, salvando apenas a família de um profeta da morte por afogamento.

Em A extinção das abelhas, lançamento da Companhia das Letras, Natalia Borges Polesso visita o fim do mundo e retrata um colapso cujo “colapsômetro” é apenas mais uma ferramenta de engajamento, tal qual os stories ou os reels. Ele não está lá para de fato nos ajudar a agir, apesar da interface de aplicativo, mas sim para que fixemos nele os olhos até o momento final (e talvez esse seja um símbolo poderoso: quando o mundo acabar, você estará encarando a tela do celular?). Nesse mesmo tom, ela constrói personagens que se movem através de uma solidão quase palpável – o que nos leva também a perguntar, entre outras coisas, se o nosso mundo altamente tecnológico não produziu as redes sociais porque somos mesmo muito solitários.

Uma distopia brasileira protagonizada por mulheres lésbicas, A extinção das abelhas é um mosaico do apocalipse, um painel polifônico que contém o registro da queda e uma fábula de sobreviventes – entre eles, nossa protagonista que faz strip-tease virtual com uma máscara de gorila a fim de sobreviver em um país em que três laranjas custam vinte e três reais. Escrito com segurança, notável planejamento (detalhes como as ligações entre os capítulos, as epígrafes com trechos de Mortal Loucura, de Maria Bethânia, a protagonista Regina – rainha, abelha-rainha – a gata Mel, enfim, símbolos do fim e de um recomeço possível) e altas doses de poesia, A extinção das abelhas é um romance que nasce em meio às ruínas morais de um país curvado diante do esgoto. É um trabalho potente destinado a ecoar por muito tempo.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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