O som do rugido da onça – Micheliny Verunschk
No século XIX, quando Spix e Martius vêm para os trópicos em uma expedição científica, naquela ânsia europeia que mais se assemelhou à curiosidade de um menino que queima formigas, levaram de volta consigo oito crianças indígenas. Das oito, seis morreram na travessia do Atlântico; apenas duas chegariam com vida ao reino da Baviera. É através dos olhos dessas crianças, expostas e apalpadas como num circo, que a pernambucana Micheliny Verunschk, escritora e historiadora, relatará o início de tudo conforme há de ser (e, desta vez, o começo da história não será a vontade de um rei ganancioso).
Erudição de acadêmica, inspiração de poeta e mão firme de contadora de histórias. Difícil escolher qual é o elemento de maior mérito nesse livro escrito como se tece um tecido fino – e resistente, maleável, macio, frio ao toque.
A certa altura do livro, Verunschk afirma que “o papel suporta qualquer coisa que se deseje. Palavras podem ser animais dóceis”. A história da sociedade ocidental, tal como é contada e nos foi ensinada no colégio, repousa nessa docilidade.
No futuro, quando finalmente tivermos dado os nomes certos às coisas, quando já não chamarmos de “grandes navegações” as expedições de larápios transatlânticos, de “descobrimentos” as invasões e pilhagens que levaram ao genocídio dos povos americanos, de “heróis” os destemidos estupradores, de “catequização” a violenta imposição de uma cosmogonia delirante, enfim, quando esse dia chegar, O som do rugido da onça será uma das obras brasileiras apontadas como pioneiras na reinvenção dessas narrativas.
Agora, neste ponto do nosso século, essa reinvenção dá os seus primeiros passos e tudo nos indica – a sociedade global com sua a política e economia, os esgares da natureza, tudo – que será justamente ela, essa reinvenção-revolução, quem começará a salvar a humanidade da destruição total.
Pequena coreografia do adeus – Aline Bei
Pequena coreografia do adeus me pegou logo no título – como bailarina frustrada e aposentada cedo justamente por não me encaixar – achei tão bonito, que logo já abri o livro e devo ter lido umas 60-70 páginas numa tacada só. Me vi tão envolvida na dor de Júlia Terra e fui tomada pelo lirismo e pela poesia do romance de Aline Bei, que por alguns dias – até terminar – esse era o único livro que conseguia ler.
Filha de pais separados – um sem saber o que aconteceu para acabar, o outro que nem sabe porque tudo começou – Júlia estava nessa Terra parecia que para ser só. Três pessoas ligadas entre si, talvez por uma brincadeira do destino, vivendo num descompassado cotidiano de separações. Frente à falta, à morte e ao vazio que esta traz, Júlia vai escrevendo sua(s) história(s) em busca da tal individualidade, que, de certa forma, todos estamos constantemente procurando. E foi muito bom acompanhar frestas de Júlia nesse processo.
A palavra que resta – Stênio Gardel
O nome completo do meu pai está nesse livro. Pegando partes do nome do personagem principal, do autor e até de um capítulo (“mourão” de cerca), temos nome e sobrenome desse homem que nasceu e viveu grande parte da vida no interior do Ceará, num lugar que parece o de Raimundo, Cícero e Damião. Nunca fui para Crateús – cidade natal do meu pai -, mas pelas histórias que sempre ouvi, a paisagem da narrativa de A palavra que resta se parece bastante com o pedaço de terra do sr. Gonçalo, o avô que também nunca conheci.
Assim como Damião, o meu pai – que já estava longe do semiárido – também topou com uma filha desviante e também (re)agiu; não com a mesma veemência, felizmente (?). A sra. minha mãe também foi um pouco Caetana – “isso que tu fez não é coisa de Deus!”. E mesmo com todas as diferenças entre eu e Raimundo, me vi nesse menino “imundo”. Foi triste, e preciso.
A história de Raimundo Gaudêncio e Cícero – dois garotos que amam garotos – é costurada por uma carta deixada por Cícero, antes de Raimundo sair de sua terra, enxotado pela aversão dos que eram queridos a ele. Uma carta, logo para Raimundo, que era analfabeto – onde já se viu essa ideia, Cícero? Sem nunca ter lido a carta, 50 anos depois, Raimundo para de tentar fugir de si mesmo, toma coragem e vai para escola, aprende a ler para finalmente saber o que Cícero queria dito naquele encontro que não aconteceu.
Além de um enredo potente, o livro é escrito com maestria por Stênio Gardel – que romance de estreia! O domínio da oralidade e um estilo que serve à narrativa, não sobrepõe, não empola, são coisas bonitas demais de se ler!
Esse é um livro triste, tristíssimo, mas que é muito bom que todo mundo leia. É preciso demais.