Andreea Raducan e as Olimpíadas de Sydney – vinte anos depois

Para que Andreea Raducan ganhasse o ouro na competição individual geral nas olimpíadas de Sydney em 2000, Svetlana Khorkina teve que chegar de joelhos na aterrissagem de seu salto sobre o cavalo. Khorkina era a favorita ao título, a maior superstar de sua geração e uma figura de imenso carisma. Seu corpo longilíneo e atípico para os padrões de um esporte que no último quarto do século XX produziu atletas de 1,40 m e 35 quilos, feitas de puro músculo, se destacava em todos os sentidos, desde sua figura afilada de excepcionais 1,65 m até seu rosto compenetrado beirando os limites da antipatia. Khorkina vinha para a final individual geral com um currículo no qual figuravam um ouro nas barras assimétricas e uma prata por equipes nos jogos de Atlanta em 1996, além da prata do time russo, de dois dias antes (que entraria para os anais da ginástica: as russas esperavam um ouro e, portanto, quando foram surpreendidas pelas impecáveis romenas e alcançaram apenas a prata, a cerimônia de premiação para elas pareceu mais um velório que um pódio olímpico). Com toda essa moral, seu collant preto com elegantes padrões desenhados em strass e seu corte de cabelo estiloso, Svetlana Khorkina, a rainha incontestável das barras assimétricas, vinha para intimidar e confirmar com títulos a fase mais alta de sua carreira de atleta de elite. Assim, quando ela chegou de seu Yurchenko com meio twist carpado sem tempo para completar o movimento e acabou de joelhos na área do salto, sua reação foi cair no choro. É praticamente impossível levar um ouro na final individual geral com uma queda em algum dos aparelhos.

Khorkina não foi a única a falhar no salto: o cavalo parecia estar amaldiçoado. Uma após a outra, as atletas aterrissavam de maneiras desajeitadas ou sofriam quedas espetaculares. A americana Elise Ray quase sofreu um acidente grave na chegada de seu primeiro salto: ela passou varada pelo cavalo e por um centímetro ou dois não aterrissou em cima do próprio pescoço. Alguém chamou a atenção da equipe técnica dos jogos para o fato de que a sequência de quedas não parecia normal. Ao medirem a altura do aparelho, foi constatada uma discrepância de nada menos que 5 centímetros entre as estipulações oficiais e a altura verificada. Ou seja, uma trapalhada que por pouco não causou um acidente gravíssimo, quem sabe até fatal. Felizmente, as únicas fatalidades que observamos foram as quedas que levaram o quadro de medalhas a reversões inesperadas, tais quais Svetlana Khorkina terminar a competição em décimo lugar. 

Os jogos olímpicos de Sydney, sob o slogan memorável de “Os jogos do novo milênio”, foram um divisor de águas para a ginástica artística. Assim como os jogos de Montreal parecem ter sido palco para a ascensão de uma potência na modalidade, uma que estabeleceria novos paradigmas de excelência na figura de Nadia Comaneci, os jogos australianos do novo milênio parecem ter se dado conta de que o reinado romeno estava durando tempo demais. Desde que Elena Leustean ganhou um bronze nos jogos de Melbourne, em 1956 – a segunda edição em que as mulheres puderam competir –, a Romênia não deixou de apresentar ao mundo ginastas excepcionais e equipes fantásticas: passando por Aurelia Dobre e Daniela Silivas, Catalina Ponor e Larisa Iordache, temos, ciclo olímpico após ciclo olímpico, demonstrações de excelência e de estilo que sempre acabam por reconfigurar os limites desse esporte. Para se ter uma ideia, a seleção romena de ginástica artística feminina tem um desempenho olímpico de 47 medalhas em todas as edições dos jogos; em comparação, as americanas têm 38 e as russas e as chinesas, 19 e 18, respectivamente; o Brasil, por sua vez, ainda não tem nenhuma.

Um país pequeno e rural, de vinte milhões de habitantes, a Romênia é cortada pelo Danúbio e banhada ao leste pelo Mar Negro. Em seu centro se levanta o arco dos Cárpatos e se estende a região da Transilvânia, mais conhecida por ter sido berço de Vlad Tepes, comumente tido como a inspiração de Bram Stoker para seu Drácula. Um dos últimos países a ingressarem na União Europeia, a Romênia é uma república peculiar: o romeno é falado apenas na Romênia e na Moldávia, além, é claro, das colônias romenas espalhadas pelo mundo, e décadas de regimes ditatoriais e influência soviética seguidas por uma transição traumática para a democracia fizeram do país um dos menos prósperos do continente (em 2013, o PIB per capita da Romênia era equivalente a cerca de 55% da média da UE). 

Em sua autobiografia, The other side of the medal, Andreea Raducan oferece um vislumbre de sua vida enquanto era parte do time nacional, e o que vemos é uma possível explicação para o sucesso da escola romena na ginástica. Além dos grandes treinadores, famosos tanto por seu talento quanto por seu despotismo (quem nunca ouviu falar em Bela Karolyi, Octavian Belu ou Mariana Bitang?), todo o sistema de formação das atletas é resquício da influência soviética e é também adotado nas escolas russa e chinesa. A tradição de training camps rigorosos (sete dias por semana, oito horas por dia) para as seleções nacionais, com recrutamento de novos talentos em todo o território romeno, não é a mesma praticada nos EUA, por exemplo. De acordo com Andreea, que aos 12 anos de idade já treinava 360 dias por ano com o time nacional júnior em Deva, a ginástica estadunidense de elite passa pela prática esportiva no high school, com seus campeonatos regionais e nacionais estabelecidos pelos calendários locais, e as atletas seguem vivendo com suas famílias e frequentando uma escola regular normalmente. As seletivas são feitas e a equipe que representará o país entra em reclusão de treinamento cerca um mês antes das grandes competições. Andreea relata que, nos anos em que viveu no internato em Deva, era aluna de uma escola especial para as ginastas, tinha uma dieta restrita até a última caloria e só via a família nos feriados de natal. 

The other side of the medal é antes de mais nada uma espécie de justificativa, perante o mundo, da primeira ginasta a ter uma medalha olímpica confiscada por conta de uma acusação de doping. Lançado em romeno em 2012 (a edição em inglês saiu no ano seguinte), o livro é uma autobiografia (devidamente pasteurizada) da atleta e uma leitura interessante para os admiradores da ginástica artística romena. Apesar de não ter lá grande valor como literatura (a edição que comprei no Kindle por 27 reais estava inclusive repleta de erros de revisão), é um documento valioso para os fãs de Andreea e também para quem se lembra de toda a controvérsia que tomou conta dos noticiários naquele distante verão australiano do ano 2000, quando o mundo ainda era outro e as coisas eram inocentes a ponto de o cavalo de salto estar 5 centímetros mais baixo no dia da final individual geral.

Para quem não se lembra muito bem o que aconteceu, segue uma explicação em linhas gerais: em 19 de setembro de 2000, a Romênia desbanca a poderosa Rússia e leva o ouro por equipes. Andreea Raducan, Simona Amanar e Maria Olaru se classificam para a final individual geral, que acontece no dia 21. De maneira inédita e quase surreal, as três romenas dominam o pódio espetacularmente; uma a uma, as russas e chinesas (sem contar a ucraniana Victoria Karpenko, que chega forte à última rotação) vão cometendo erros (por exemplo, a queda de Khorkina no cavalo e sua subsequente falha nas assimétricas) que abrem caminhos para uma das finais olímpicas mais emocionantes de todos os tempos: Andreea chega à rotação final precisando de 9,575 no solo para passar o score de Simona Amanar e arrebatar o ouro; caso consiga, o pódio será de três romenas. Ao som de Riverdance e com nota de partida 10, ela executa uma rotina que recebe 9,825.

A performance de Andreea Raducan no solo na final individual geral dos jogos olímpicos de Sydney é uma das mais lindas, potentes e precisas desde Nadia Comaneci. É só assistir ao vídeo e ver com seus próprios olhos. Suas acrobacias são difíceis mas executadas com leveza; seu componente coreográfico é tão gracioso que, por anos, Andreea foi conhecida como “a romena que dança”; sua confiança é visível e toda sua figura de atleta olímpica emana competência e o hábito da excelência. O soco no ar que ela dá ao final da apresentação, ao saber que tinha entregue uma execução quase impecável, dá a medida de sua confiança naquele momento: era uma atleta no topo de sua performance. Era a melhor atleta do mundo, naquele ano, naquele dia. Era claro para todos nós. Antes mesmo da divulgação do resultado, Andreea é levantada nos ombros de Octavian Belu para ser aclamada pelo público: ela é claramente a campeã.

Esse é um momento memorável que certamente jamais será tirado de Andreea. No entanto, no dia 25 de setembro de 2000, antes da final do solo, Octavian Belu a chama para uma conversa em particular e diz que ela falhou no exame antidoping e que terá que devolver a medalha do individual geral. No dia anterior, ela havia disputado a final do salto e faturado uma prata, diante do ouro de Elena Zamolodchikova. Como após esse aparelho em particular o antidoping não havia indicado nada, o único título revogado seria o de campeã individual geral (ou seja, o mais importante). Atordoada e sem entender completamente coisa alguma, Andreea é sugada para um turbilhão de burocracia e política que só pode ter sido monstruoso para uma menina de 16 anos de idade. Em 2020, um documentário sobre essa saga foi lançado em território europeu: The golden girl, de Adrian Robe e Denisa Morariu-Tamas, retoma as batalhas legais em torno da medalha e acompanha uma espécie de tratamento psicológico que, logo percebemos, tenta dar suporte emocional a uma mulher de trinta e poucos anos que passou por um dos piores pesadelos imagináveis a um atleta.

O caso de doping em si é matéria de controvérsia intransponível. Antes da final individual geral, Andreea havia tomado dois comprimidos de Nurofen, pois estava com um início de resfriado. Esse medicamento, facilmente encomendável em qualquer farmácia de bairro, contém a substância pseudoefedrina, proibida pelo Comitê Olímpico Internacional – mas não pela Federação Internacional de Ginástica, importante frisar. O médico da delegação romena, Ioachim Oana, prescreveu o Nurofen errado para a pequena Andreea – que, na época, pesava 37 kg. Desnecessário dizer que, com esse peso, até a mussarela do dia anterior apareceria em um exame de urina. Desnecessário também apontar que, por ser substância presente em antigripais corriqueiros, a pseudoefedrina era inócua no melhoramento de performance: não era sequer banida em competições internacionais oficiais de ginástica artística e jamais esteve na lista da FIG. 

Depois de semanas num labirinto kafkiano de ações legais que levaram o caso à Corte Arbitral do Esporte, os responsáveis pela decisão chegaram à conclusão de que a efedrina, de fato, não havia ajudado Andreea em sua performance, dada a natureza da substância e as exigências da modalidade, mas que a medalha tinha que ser confiscada, de qualquer maneira, pelo apego ao regulamento e para evitar a criação de precedentes. Como dizemos aqui no Brasil, uma decisão bem “cara-crachá”. De acordo com a decisão da corte, o médico da delegação romena seria banido por dois ciclos olímpicos e Andreea não teria que devolver as outras duas medalhas nem passar por nenhum outro tipo de punição a não ser a devolução do título para o qual havia treinado a vida inteira. Na verdade, ao acompanhar os press releases do caso, é até engraçado notar que o COI tira a medalha de Andreea quase se desculpando. 

Todas as outras atletas se compadecem e vêm a público afirmar que Andreea é a verdadeira campeã. Com a mudança no pódio, Simona Amanar recebe a medalha de ouro e Maria Olaru, a de prata. Liu Xuan, da delegação chinesa, se recusa a receber a medalha de bronze, alegando que o pódio deveria permanecer como estava. Noves fora: a trapalhada do cavalo baixo era apenas o começo de uma série de cabeçadas bem intencionadas que cercaram os atletas olímpicos naquele ano 2000. Na afobação de aplicar a política de tolerância zero no esforço antidoping, o Comitê Olímpico Internacional toma uma decisão que até hoje é sentida como injusta por todos os envolvidos no caso e também pelo público em geral. Ou seja, o COI simplesmente manchou os jogos de Sydney para sempre porque quis bancar o super-herói do silogismo legal. Ajudou muito o fato de que a outra parte no litígio era a Romênia, e não uma delegação poderosa e rica como a Rússia ou os Estados Unidos. 

Como se não bastasse e como se desconfiasse de que passou vergonha mundial, em 2001 o Comitê Olímpico Internacional retira a pseudoefedrina da lista de substâncias proibidas. Ou seja, nos jogos de Atenas, se Catalina Ponor quisesse ter competido entupida de Nurofen, ela poderia. (Mas é claro que ela não quis, porque, afinal, o ponto é: remédio para resfriado não melhora performance em ginástica artística. Isso é tão óbvio que chega a ser ridículo para qualquer um que já tenha tentado uma pirueta tripla ou tido um resfriado.)

Tendo em vista a lavada romena de Sydney, as regras das competições também mudam para o ciclo olímpico seguinte: apenas dois atletas de cada país podem competir nas finais por aparelho ou individual geral. De alguma maneira, as três medalhas romenas parecem ter desestruturado as expectativas idílicas das competições internacionais em que o pódio é compartilhado por atletas na confraternização mundial do esporte etc. Estranhas coincidências em um mundo olímpico que não existe mais. A partir dos jogos de 2008, o próprio código de pontuação que era antes balizado entre 0 e 10 muda e passa a ter o 20 como pontuação máxima e o 17 como score altíssimo desejado (para se ter uma noção, aquele solo inacreditável de Simone Biles na final dos jogos do Rio valeu 15,933). 

Se por um lado a revogação do título por doping fez de Andreea uma celebridade mundial e uma estrela nacional, com todos os elementos de uma trágica injustiça, por outro lado, lamentavelmente, manchou-se a história da atleta e do próprio esporte nesse evento surreal de pura trapalhada médica e política. Até hoje, quando entramos nas páginas relacionadas da Wikipédia, vemos o nome de Andreea riscado, com a indicação de desqualificação por doping. É triste para todo mundo, mas principalmente para Andreea, é claro. Em The other side of the medal, ela começa relatando as primeiras memórias no ginásio, aos 4 anos de idade, e termina afirmando que, apesar dos pesares, teria feito tudo de novo. 

Hoje, vinte anos depois de Sydney, Andreea é mestre em jornalismo pela Universidade de Bucareste e comentarista esportiva. Serviu como presidente da Federação Romena de Ginástica entre 2017 e 2019 e trabalha em um centro de treinamento para jovens ginastas. Segue tentando uma retratação pela parte do COI (que um dia virá, esperamos) e vivendo uma vida muito acima de todo aquele lastimável episódio que começa, de maneira muito estranha, com a incrível Khorkina de joelhos.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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