Cartas de Caio F.

Para terminar a nossa série #orgulho, decidimos falar um pouco sobre o grande Caio Fernando Abreu. Dono de uma obra que vai muito além da temática LGBT (sua erudição pop-contracultural e voz narrativa altamente poética são tão cativantes que é difícil encontrar algum jovem escritor no Brasil que não apresente, em algum nível, influência de seu estilo), Caio, que nasceu em 1948 e morreu em 1996, continua dando voz às angústias urbanas de gerações de inconformes e inconformados. 

Este livro de cartas (publicado pela editora Aeroplano em 2002 a atualmente disponível apenas em e-book), é uma gostosa incursão pela intimidade desse virginiano cuja obra se infiltra, cada vez mais, naquele repositório anônimo popular postulado por Borges, que afirma que Quixote sobreviverá ao fim da memória de Cervantes. As sucessivas reedições de suas obras não são tanto o termômetro desse fenômeno quanto o fluxo intenso de recortes de seu texto que, juntamente com os de Clarice e Verissimo, encontraram solo fértil na internet (inclusive apocrifamente).

Selecionamos aqui uma carta de Caio para Adriana Calcanhotto em que é possível ver um pouco da voz e do tom carinhoso com que ele, um dos últimos artistas reais do gênero carta (será que no futuro teremos que nos conformar com compilações de tweets ou transcrições de áudios do WhatsApp?), se dirigia aos seus amigos mais queridos.

A Adriana Calcanhotto

Saint-Nazaire, 16.12.92

Deusa querida e distante,

impossível não pensar em você bebendo literalmente litros de água Perrier todo o dia – o aquecimento seca horrores a pele! –, mas não só por isso. Também procuro as cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo (vi uma autêntica na Fiac, em Paris!), que aqui, neste porto de mar na Bretagne, entre Nantes e Brest, a cidade de Querelle, são bastante raras. São mais cores de Agnés Varda, cores de Gustave Klimt.

Tua fita – da qual não me separo há meses – faz sucesso por aqui. Mal posso ouvi-la. Alain Keruzoré, meu tradutor, passou para Bernard Soubourou, que sabe tudo sobre – imagina – Tania Alves, que passou para Marie Pierre. Hoje saio na batalha, não quero ficar sem ela.

Te mando dois recortes, um deles fala em você. Mas ai, os-modemos-e-seus-segundos-cadernos são iguais em tout le monde. Ele faz uma confusão entre aquela Penélope que você musicou e um conto que Claire Cayron traduziu. Bom, não importa. Anyway, você está presente no texto – uma pequena novela – que escrevo no momento para deixar aqui, será publicada pela Arcane 17.

Fico até 31.12 neste apartamento enorme, debruçado no porto de mar, com uma vista de 360 graus e uma paisagem que, estranhamente, lembra Porto Alegre, Manhattan, Florianópolis e a ponte Rio-Niterói (com Saint-Brévin les Pins do outro lado da baía). Depois vou a Amsterdam, Köln e Frankfurt, para leituras, tradutores, agentes. Acho que volto em fevereiro – mas não sei ao certo, houve um problema com meu ap. em SP, na minha ausência e, anyway, tenho que estar na Alemanha outra vez em junho. Tenho pensado que só agora compreendo o sentido exato da expressão “minha pátria é minha língua”.

Passei o domingo, ontem, comendo ostras, bebendo vinho branco e ouvindo Jane Birkin cantando as canções de Serge Gainsbourg. Você ia adorar Norma Jean Baker. Vou levar a fita. Fiz amizade forte com a filha de Christian, o diretor da Maison – chama-se Marina, tem 9 anos, é Virgo asc. Capricórnio e tem absolutamente tudo de Van Gogh. É quem tem me dado as melhores aulas de francês.

Andei muito cadela no Brasil. Milhares de problemas, nada grave. Seu disco – deixei um recado na sua gravadora – me ajudou muito. Tem ajudado, é sincero & comovido o que te digo.

Sábado tem show de Marina em Paris. Pensei em ir, mas fui recrutado para participar de uns debates com os escritores do Báltico – Lituânia, Estônia, Letônia, imagina – seria feio faltar. Outro dia acordei com vontade de ouvir Elis e encontrei um cassete no Centro – tem Folhas secas.

Te mando uma folha de outono.

E todo carinho, e toda a energia para você continuar seu trabalho.

Je t’embrasse,

love

love

love

Caio F.

PS – Às 13h vejo Isaura na TV: Lucélia falando em francês é hilário! Logo depois tem Dona Beija – mas aí é demais para minha beleza.

PS 2 – Torci tanto por Benedita da Silva. Sábado, no Libération saiu um perfil dela chamando-a de “La madona des favelas”. Desta distância, lanço meu olhar sobre o Brasil e entendo ainda menos…

PS 3 – Estou cantando Anne Dusquenois, que produz Marina, para trazer você.

PS 4 – Brigitte Bardot tentou o suicídio com barbitúricos, ontem!

PS 5 – Comentário na TV sobre Lady Di: “Bem, se os ingleses não querem saber dela, nós, franceses, podemos dar um jeito…”

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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