Orlando: Uma biografia

A melhor palavra para começarmos a falar sobre Orlando: Uma biografia, de Virginia Woolf, é “graça”, nas duas acepções comuns da palavra: “graça” de humor, comicidade, pois o livro é engraçadíssimo, e “graça” de elegância, beleza, pois o texto é de finíssimo acabamento e alcança alturas estratosféricas de realização poética. 

Com relação àquela primeira acepção, vale a pena chamar a atenção para o deboche implacável com todas as rígidas instituições inglesas, talvez a base da mais tradicional das culturas ocidentais. Os papéis de gênero são certamente a principal vítima, mas Virginia não poupa os intelectuais e os poetas, a nobreza e as relações de classe, ou mesmo a própria Vita Sackville-West, em quem a obra se inspirou e a quem foi originalmente dedicada. A “graça” do livro começa logo no título, já que o gênero “biografia”, por definição um gênero de não-ficção, é utilizado aqui para relatar a vida de um personagem tão ficcional quanto possível: Orlando, além de mudar de sexo da noite para o dia, vive mais de 300 anos. A saga desse improvável nobre inglês é narrada com toques cômicos tais quais:

“(…) Não foi possível dar-lhe de comer, nem mostrou qualquer sinal de vida por sete dias seguidos. (…) Os médicos não eram nada melhores que os de hoje, e após recomendarem repouso e exercício, pouca comida e muita comida, companhia e solidão, que ficasse de cama o dia todo e cavalgasse sessenta quilômetros entre o almoço e a ceia, juntamente com os sedativos e os estimulantes de sempre, alternados, dependendo dos azares da imaginação deles, com beberagens de baba de lagartixa ao acordar e goladas de fel de pavão antes de dormir, eles o deixaram entregue à própria sorte e deram o veredito de que ele estivera dormindo durante uma semana inteira.”. (p. 46)

Quanto à beleza do texto, característica fundamental de toda a produção de Virginia Woolf, temos que mencionar a existência de trechos lindos (a cada página, Virginia nos oferece parágrafos saborosos que nos convidam a fazer o tal do close reading) e camadas de possíveis interpretações (por exemplo, a “transição” de gênero que acontece exatamente em Constantinopla, essa cidade mutante de história cristã e muçulmana de conquistas e reconquistas – cidade que foi oficialmente batizada Istambul apenas em 1930). Segue uma amostra da poesia que Virginia tece em prosa:

“Partamos, pois, em exploração, nesta manhã de domingo, quando todos estão admirando a flor da ameixeira e a abelha. E sussurrando e murmurando, perguntemos ao estorninho (que é um pássaro mais sociável do que a cotovia) o que ele, pousado na borda da lata de lixo, de onde cata, dentre os gravetos, fios de cabelo do ajudante de cozinha, pensa disso. O que é a vida, perguntamos, apoiando-nos no portão do pátio; Vida, Vida, Vida! grita o pássaro, como se tivesse nos ouvido (…).” (p. 177)

A edição da Autêntica que temos aqui, em capa dura, papel Pólen Bold 90g/m² e uma bela jacket, além de trazer as fotos que Virginia preparou para a edição original (e que não aparecem, por exemplo, na edição da Penguin), inclui também mais de 70 páginas de notas e posfácio. 

Uma verdadeira experiência estética, em todos os sentidos. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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