Temporada

O interfone tocou e era José Leandro falando para por favor verificarmos a porta da frente porque tinha chegado correspondência. Agradeci cordialmente, desejei uma boa tarde e fui logo verificar o capacho do hall, que é onde Leandro cuidadosamente deposita as caixas, cartas e revistas que recebemos quase diariamente pelo correio – sem contar os boletos. Desta vez, o maior dos pacotes, aproximadamente 35x25cm, era a estrela da leva: claramente, a revista piauí do mês havia chegado. 

Com um formatão e um estilo inconfundíveis, a cria de João Moreira Salles, que assinamos intermitentemente desde 2007 (temos uma coleção que cresce junto com a preocupação sobre onde guardá-la), é sem dúvida uma das melhores publicações periódicas a que um brasileiro do século XXI pode ter acesso. Impressa e distribuída pela Editora Abril, piauí vai na contramão do mundo ao dar espaço a textos caudalosos que já nascem estranhos no ninho: em uma cultura em que cada vez mais o jornalismo é tratado com uma impaciência ansiosa (raros os exploradores que vão além das headlines compartilhadas no Facebook) ou como mais um produto de entretenimento (fofocas espetaculares sobre a vida pessoal de subcelebridades também são chamadas de jornalismo), a decisão de capturar em papel composições de 40 mil toques acaba sendo uma corajosa aposta lançada no escuro – ainda mais em um país como o Brasil, em que a maioria das pessoas têm verdadeira fobia ao ato de ler. De qualquer maneira, o projeto tem vingado e se provado saudável o suficiente para bancar uma tiragem média de 42 mil exemplares e uma boa plataforma virtual para assinantes. O único segredo (além, é claro, do capital privado e de seu fundador bilionário) é a alta qualidade das edições. 

Com um time rotativo de primeira categoria (a piauí 163 traz, por exemplo, de Vanessa Barbara a Daniel Galera, de Miguel Lago a Sidarta Ribeiro), a revista apresenta uma sempre excelente seleção de textos que se prestam a abordar, nas palavras de Moreira Salles, “de política a odontologia”, desde que com um olhar interessante e esclarecedor. O número atual, um dos pontos altos desses quase quinze anos de história, trouxe, entre outras coisas (por exemplo, uma capa com a ilustração de Bolsonaro a caráter, com trajes de palhaço, fazendo malabarismos com bolinhas de coronavírus), uma pepita garimpada por Tiago Coelho. 

A matéria “Filmes de comentário”, inserida no quarto final da revista, trata do florescimento de um novo cinema, profundamente brasileiro, no cenário improvável da periferia de Contagem, Minas Gerais. Tiago Coelho nos apresenta à trajetória dos diretores mineiros André Novais, Thiago Macedo, Maurílio Martins, Gabriel Martins e sua produtora Filmes de Plástico, nascida do encontro desses jovens na Escola Livre de Cinema de Belo Horizonte, a partir de 2006. 

Por ter adorado o texto e ficado curiosa para ver a cara desses filmes, fiz algumas buscas e, para minha surpresa, não foi difícil achar o curta Filme de sábado, o primeiro de Gabriel Martins, no YouTube. Na Netflix também pude assistir a Temporada, de André Novais, mais uma belíssima surpresa proporcionada pelas indicações da piauí e que agora compartilho aqui com vocês.

Ganhador do prêmio de melhor filme do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2018, e um dos destaques, em 2019, da mostra New Directors/New Films, do Lincoln Center, em Nova York, Temporada parte de uma premissa simples para nos contar um episódio da vida de Juliana (interpretada por Grace Passô), uma agente de controle de endemias que se muda de Itaúna para Contagem depois de passar em um concurso público. Lá, ela se vê prestes a recomeçar a vida do zero e inclusive faz novos amigos (não posso deixar de mencionar aqui o hilário Russão, interpretado pelo carismático Russo Apr). A incursão pelas vidas desses trabalhadores que por pouco não são miseráveis (um emprego mal pago os separa da miséria) nos toca pela identificação imediata com a realidade brasileira e tem um sabor de crônica pois se detém em pequenos detalhes de composição da vida cotidiana. A escolha pelo tipo de roupas e de entretenimento, as casas onde residem, o gerenciamento do dinheiro, as interações com os colegas de trabalho e os ossos do ofício: tudo isso se movimenta contra o pano de fundo das casas multicoloridas, inequivocamente reconhecíveis como residências de brasileiros de baixa renda. Uma das cenas mais bonitas é montada a partir de panoramas do bairro, quando Juliana e um dos moradores cuja casa ela vistoria sobem na laje e aproveitam dali a vista privilegiada.

Nossa improvável protagonista não esconde nada de nós: seus medos, seus perrengues, seus amassos no crush. Testemunhamos toda a sua trajetória rumo ao novo e, ao fim do filme, temos por ela um carinho imenso. Através dos olhos dessa mulher brasileira vemos o Brasil retratado em seus pequenos dramas e felicidades. Tudo isso embrulhado num filme de baixo orçamento, totalmente off-Leblon e primorosamente bem acabado. Temporada integra o conjunto daquelas produções artísticas que conseguem achar no simples o sofisticado, no aparentemente insignificante o universal e, principalmente, que sabem usar dos silêncios – o que, assim como a própria piauí, é revolucionário em épocas de estridência. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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