1917

Sir Martin Gilbert, no primeiro capítulo de sua obra A Primeira Guerra Mundial, descreve o clima entre as potências europeias antes de 1914: o prelúdio da Grande Guerra (como era chamada antes de sua sucessora nuclear, a Segunda) foi basicamente um monte de pequenas tretas entre os governantes europeus que queriam mesmo era botar os galos pra brigar. George Steiner não é citado nessa obra, mas sua análise das conflagrações do século XX, em No castelo do Barba Azul, pode ser usada para explorar essa predisposição ao atrito. Para Steiner, na síntese perfeita de Vargas Llosa, “a cultura europeia não só anuncia, como também deseja que venha esse estouro sanguinário e purificador que serão as revoluções e as duas guerras mundiais.”

Para Gilbert, apesar de o assassinato do herdeiro dos Habsburgos ter sido o estopim do conflito por ter forçosamente escancarado o sistema de apoio político e alinhamentos que se ensaiava na Europa desde a unificação da Alemanha, a verdade é que no ano de 1914 qualquer coisa poderia acender o pavio, dado o nível de animosidade entre as potências. Talvez não possamos olhar a guerra como mera birra de governantes loucos, já que ela mobiliza muitos símbolos e respostas emocionais fundamentais (se você já se emocionou ouvindo o hino do seu país, sabe do que estou falando), mas no fim das contas qualquer conflito armado é isso mesmo: a aplicação combinada da ganância, do capricho, da irracionalidade e da violência. 1917, dirigido por Sam Mendes (aquele do hit Beleza Americana, de 20 anos atrás) e lançado nos EUA e no Reino Unido em dezembro de 2019, nos ajuda a experimentar a loucura da guerra através de um plot simples com uma técnica também simples, mas primorosamente executada. 

Mendes decidiu filmar 1917 por causa dos relatos de seu avô, veterano da Primeira Guerra, e do fato de que, para o diretor, a Primeira Guerra já não estava mais na consciência popular (algo que é realmente difícil de refutar, levando em conta que até a Segunda Guerra parece não ter mais lições a ensinar e o espírito do nazismo floresce no coração das mais cristãs das famílias). Com roteiro de Mendes e Krysty Wilson-Cairns, esse filme de pouco menos de duas horas tem a sacada genial de retratar um evento de mais de um século atrás utilizando a estética dos games mais modernos: a tarefa dos nossos protagonistas é baseada num mapa de território inimigo e eles devem ir de ponto A a ponto B; há uma contagem regressiva que começa nos primeiros minutos de filme, bem à moda de fases de games; além disso, alguns checkpoints oferecem respiro, reabastecimento e informação adicional. 

Mas o que há de tão diferente nesse filme (mais um filme) de guerra? A resposta é simples: a técnica. Afora as discussões sobre a glamurização da guerra através da conduta heroica de um soldado aliado, ou mesmo sobre a efetividade da experiência de imersão nas trincheiras como uma espécie de conscientização popular, a verdade é que a execução do filme demonstra uma técnica virtuosa que surpreende logo no começo e segue espantosa até a cena final. Para acompanharmos os protagonistas, os cabos Schofield e Blake (interpretados por George MacKay – o Bodevan de Capitão Fantástico – e Dean-Charles Chapman – o Tommen de Game of Thrones), uma série de truques são usados e, a partir de travelings, carros, cabos guiados e muita câmera na mão, temos material para uma impressionante montagem em tempo real e dois grandes planos-sequência magistralmente costurados. Os cenários e figurinos são impecáveis tanto visualmente quanto a serviço da narrativa e a criação de momentos de tensão é claramente o trabalho de profissionais que dominam o seu craft. Não é a toa que 1917, qua ganhou o Globo de Ouro, o Bafta e o Critics’ Choice de melhor filme este ano, teve 10 indicações ao Oscar – dos quais levou três em categorias técnicas: Melhor Fotografia, Mixagem de Som e Efeitos Visuais. (Aqui vale incluir uma nota: Sam Mendes não ter levado o Oscar de melhor diretor por 1917 só não foi uma injustiça porque Bong Joon Ho e seu Parasita foram de fato o furacão do ano; de qualquer maneira, Mendes deve ter ficado profundamente decepcionado, porque vinha ganhando tudo na temporada de premiações e seu tour de force acabou ficando sem a cereja do bolo.)

George MacKay disse que filmar foi como participar de uma peça de teatro: se algo desse errado, ele era orientado a continuar improvisando; em alguns momentos, os atores e as câmeras de fato executam uma quase coreografia. O filme todo em movimento, a trilha sonora e até, por que não, o virtuosismo exibicionista (até estrelas do cinema britânico como Benedict Cumberbatch e Andrew Scott são esbanjadas em pequenas pontas): tudo isso faz de 1917 um excepcional filme de guerra e um grande filme de ação. Isso, é claro, sem contar a reflexão necessária sobre o horror da violência e a questão bélica em tempos de governantes birrentos.

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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