A vida invisível

Nosso representante brasileiro no Oscar, A vida invisível (de Karim Aïnouz, baseado no livro de Martha Batalha) nasce num momento de intensos debates públicos no Brasil, inclusive no que diz respeito ao papel social da mulher. Enquanto o progresso marcha inexorável, alguns setores da população apegados a um caquético machismo já não justificável tentam gritar através dos atos de seus políticos eleitos que “azul é de menino, rosa é de menina”. Todos sabemos que esse discurso não diz respeito a cores de roupas: ele deixa transparecer um desejo de rigidez dos papéis de gênero que basicamente colocam a mulher no seu devido lugar de “princesa”, ou, em outras palavras, no seu lugar de submissão. 

A história de Eurídice Gusmão em busca da realização de seu sonho ilustra de maneira quase didática como era a questão da liberdade pessoal das mulheres, uma ou duas gerações atrás. A ação principal do filme se desenrola a partir da década de 1950 e cobre as décadas seguintes até o que parece ser o começo deste nosso século; a ambientação se utiliza de cores e texturas que denunciam o calor do Rio e a pobreza muito específica da classe média baixa brasileira. A renúncia compulsória de Eurídice a seu potencial artístico como concessão natural à visão de mundo da família ou do marido é uma fotografia exata de como esperava-se que as mulheres vivessem sua vida: à sombra dos homens. O fio central da trama é a trajetória das duas irmãs separadas toda a vida por um mundo de homens: o turrão pai português, principalmente, mas também o homem que abandonou Guida e o homem que se casou com Eurídice (interpretado por Gregório Duvivier).

Demonstrações repulsivas de machismo são dadas até nas cenas de intimidade, dolorosamente longas (e convenhamos: o nu frontal de Gregório foi desnecessário, mas que nudez é de fato necessária? Para um filme que vai ser contado do ponto de vista das mulheres, uma cena de nudez masculina talvez diga muito sobre a cultura da nudez feminina onipresente).

A vida invisível não é um filme fácil de assistir. As performances impecáveis das atrizes, porém, coroadas pela participação curta e poderosa de Fernanda Montenegro, fazem dele um evento imperdível. Sem dizer muita coisa, madame Montenegro aparece em cena com a vida de Eurídice inteira estampada no rosto e isso nos emociona a ponto de nos fazer chorar e refletir sobre o que significa ser mulher. É uma bela e urgente obra de arte. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *