O filho eterno

“(…) Em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a síndrome de Down entrará no seu texto. Esse é um problema seu, ele se repete, não dos outros, e você terá de resolvê-lo sozinho. Fala muito em voz alta, e ri bastante — não será derrotado pela vergonha de seu filho, ainda que tenha de fazer uma ginástica mental a cada vez que se fale dele em público. Simular, quem sabe, que o filho não nasceu ainda — que alguma coisa vai acontecer antes que o irremediável aconteça. Escreva, ele se diz — você é um escritor.

Cuide do mínimo — o resto virá sozinho. A criança vai bem, em silêncio no quarto. Não há muito a fazer. Já sabe que é preciso estimulá-la, mas as informações são poucas e vagas, e ele odeia médicos, hospitais, enfermarias e enfermeiros, tratamentos, remédios, doentes, planos de saúde (nunca teve nenhum), prescrições, bulas, farmácias. Sente dificuldade em olhar para o filho, que lhe lembra sempre tudo o que não lhe agrada. Pediu expressamente à professora que não publique o poema, aquele poema ridículo, e parece – ele se lembra vagamente – que ela disse sim, que a coisa seria retirada da revista. É um alívio. Os leitores deveriam ser poupados daquela baboseira horrorosa. (…)”

As pessoas conseguem ser mais cruéis sentindo que fazendo qualquer coisa. (Também conseguem ser cruéis pensando, mas nada supera em crueldade os sentimentos cruéis.) Neste livro de Cristovão Tezza (que inclusive virou um bom – e angustiante, naturalmente – filme protagonizado por Marcos Veras em 2017), o protagonista conta sua experiência como pai de um menino (depois rapaz, depois já homem) com síndrome de Down. O nascimento da criança numa época (os anos 80, aquele “tempo inocente” em que se fumava até em sala de espera de hospital) em que ninguém sabia o que era “síndrome de Down” (essa variedade cromossômica era chamada de doença e os doentes, mongolóides) e os impactos de uma responsabilidade dessas sobre a vida prática de um homem extremamente egoísta que, até então, não tinha peito pra nada, a não ser pra se pensar predestinado à literatura.

O que o livro tem de chocante logo de cara é a sua patente amoralidade. Pensamentos e sentimentos ali relatados são de uma crueldade arrepiante, mas de uma lógica irrefutável. É a amoralidade utilitarista da modernidade: poucos de nós gostaríamos de ter filhos com alguma limitação, uma deformidade qualquer (a modernidade inclusive deu novos contornos ao sentimento de que os filhos têm a obrigação de ser o legado e a validação de seus pais; isso é talvez o principal recorte temático de O filho eterno) . E é aí que a fuga do óbvio se faz com o que se pode chamar de completa vertigem: Cristovão Tezza se revela de um jeito tão corajoso – a coragem de se pôr a nu em público, de se revelar inteiro a olhares quem sabe reprovadores – que às vezes a gente se pergunta se é mesmo autobiográfico aquilo tudo. E dizem que é.

Formalmente falando, Tezza é impecável. Seu esquema de intercalar em parágrafos episódios passados e presentes é feito com maestria, seu alcance de certas verdades subjacentes é preciso, agudo na justeza das palavras, eu diria, e mais de uma vez durante a leitura eu li e reli páginas inteiras só pela beleza do texto, mesmo. Copio aqui um trecho aleatório só para dar uma amostra da qualidade:

“Ele dormiu, ou quase dormiu, num sofá vermelho ao lado da cama alta de hospital, para onde trouxeram a mulher em algum momento da madrugada. A criança estaria no berçário, uma espécie de gaiola asséptica, que o fez lembrar do Admirável mundo novo: todos aqueles bebês um ao lado do outro, atrás de uma proteção de vidro, etiquetados e cadastrados para a entrada no mundo, todos idênticos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados, sustos respirantes, todos imóveis, de uma fragilidade absurda, todos tábula rasa, cada um deles apenas um breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e à língua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as quais, algum dia, eles tentariam dizer quem era, afinal, e para que estavam aqui, se é que uma pergunta pode fazer sentido.” (p. 19)

Sem dúvida, uma das melhores coisas produzidas por um escritor brasileiro neste início de século. Não me admira que Tezza tenha levado, com ele, os maiores prêmios literários da temporada 2007/2008. A trajetória de um pai rumo a uma forma pouco óbvia de amor, enfim. Leitura obrigatória para quem acompanha literatura brasileira (ou a experiência humana sobre a terra). 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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