Running with scissors

A vida é generosa ao mostrar que a realidade pode ser, muito constantemente, mais estranha que a ficção. Antes dos grandes telescópios, por exemplo, nem o mais criativo ficcionista teria inventado uma história em que bilhões e bilhões de estrelas em obstinada viagem pelo misterioso cosmo seriam o palco da tragédia humana. Palmo a palmo, no entanto, os olhos da ciência têm desvendado um universo fantástico em que partículas subatômicas e buracos negros convivem em espantosas e frequentemente inescrutáveis leis que inclusive possibilitam o luxo de uma supernova ou de uma bactéria. Não é de espantar, portanto, que a imaginação humana seja limitada pela mera condição de sermos nós mesmos uma criação do imponderável universo. 

As interações sociais pela caneta dos grandes escritores realistas, num sentido amplo, esses fazedores da tal Grande Literatura, atingem níveis admiráveis de precisão de representação, mas são limitadas, justificadamente, pelas demandas da verossimilhança. Assim, o delírio de Raskolnikov, ainda que febril, se mantém dentro de certas linhas intransponíveis da criação literária, assim como a tenacidade doentia do capitão Ahab ou mesmo, no limite, a transformação sumária de Gregor Samsa em um imenso inseto. Sob o indulto da autobiografia, entretanto, Augusten Burroughs consegue relatar uma sequência verdadeiramente circense de episódios insanos e fazer com que as pessoas realmente acreditem naquele relato. 

Running with scissors é basicamente um registro da infância de Augusten, a mais insólita possível porque pautada pelos surtos psicóticos de sua mãe (uma poeta delirante) e o reino sem limites da residência do dr. Finch (psiquiatra a cujos cuidados permanentes ela entrega Augusten). A liberdade absoluta que o menino experimenta na dinâmica da excêntrica família Finch é o que dá as cores mais fortes da loucura em que ele submerge como em um aquário de seres lunáticos e eventos improváveis (ser incentivado, aos 13 anos, a manter um relacionamento com um pedófilo de 33? Ou ser orientado por seu psiquiatra e guardião a simular um suicídio para fugir da escola? Fazer um buraco no teto da cozinha diante da complacência dos adultos? Usar uma máquina de eletrochoque como um passatempo em família? Jogar os móveis de um quarto de motel na piscina e sair correndo pela rua? Passar o ano se alimentando dos candy canes da árvore de natal?). Esses eventos, vale dizer, foram reafirmados como reais por Burroughs em suas entrevistas, depois que ele se tornou um popstar literário (Running with scissors vendeu milhões de cópias em mais de 25 idiomas, ficou na lista dos mais vendidos no New York Times por mais de dois anos e em 2005 virou um filme estrelado por Gwyneth Paltrow, Annette Bening e Alec Baldwin). O problema é que, na verdade, essa coleção de absurdos só se tornou tão estrondosa por ser, supostamente, uma amostra da realidade. Caso fosse publicado como ficção e não como relato, Running with scissors teria sido atacado como simplesmente ultrajante. 

E o quanto desse relato é verídico, de fato, é matéria de controvérsia.

Uma parte da crítica parece aceitar as aventuras de Burroughs como factuais porque, sendo a realidade mais estranha que a ficção, ninguém em sã consciência conseguiria inventar tudo aquilo; por outro lado, episódios como o protagonizado por Misha Defonseca – que escreveu suas “memórias ficcionais” sobre o Holocausto e foi condenada a indenizar sua editora em US$22 milhões depois de desmascarada – nos fazem pensar sobre os limites entre intenções, reconstituição e fabricação nas autobiografias. 

A família Turcotte, apresentada no livro como os Finch, veio a público dizer que apenas as linhas gerais da narrativa são reais; os detalhes, dizem as irmãs Turcotte, foram todos distorcidos para soarem mais chocantes em livro. Elas dizem também se sentirem traídas pelo retrato maldoso de traços grotescos que salta das páginas dessas memórias inexatas. O irmão de Burroughs (John Robison – o nome real de Augusten Burroughs é Chris Robison) confirma ter presenciado coisas louquíssimas na residência Finch; de acordo com a reportagem da Vanity Fair, o buraco no teto da cozinha continua lá, apesar de as irmãs Turcotte afirmarem que foram feitos por um pedreiro contratado, não pelas crianças; certas provas documentais falam contra a exatidão do relato: no livro, Burroughs diz ter sido entregue para o dr. Finch aos 12 anos; certidões de matrícula em sua escola em Northampton, no entanto, mostram que ele já tinha quase 15. Ou, seja, é razoável supor que ninguém está sendo completamente sincero. A verdade em disputa parece ser de lado a lado um cabo de aço pelo próprios interesses – e ao público só resta mesmo ler o livro e tirar as próprias conclusões.

Essencialmente underground, de um humor negro mais perturbador que engraçado – ainda que estranhamente divertido -, Running with scissors se apresenta num paradoxo indesatável: talvez seja impossível gostar do livro, na medida em que é impossível gostar de caos ou de sujeira extrema ou de hospícios, mas é mais impossível ainda não ser sugado pelo vórtex alucinado dos Burroughs e dos Finch. Impossível não sentar e ler o livro de capa a capa, numa tacada, nem que seja pela vertigem. Ou, ainda, para satisfazer esse pequeno lado nosso que se beneficia com a loucura dos outros: é nessa hora que atestamos, aliviados, a nossa própria normalidade. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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