Joker

Em sua terceira semana de exibição e quase US$800 milhões arrecadados mundialmente, a mais nova empreitada da DC tem dividido mais opiniões do que sua impressionante bilheteria denunciaria. Apesar de alcançar uma nota de público 8.9 tanto no Rotten Tomatoes quanto no IMDb, os críticos parecem não ovacionar a obra: não mais que 68% das opiniões reunidas em jornais do mundo inteiro pelo RT são positivas. As justificativas das críticas negativas variam entre classificar o filme como uma tentativa fraca de conflito psicológico à la Scorsese e denunciá-lo como uma mensagem perigosa e irresponsável ao público em geral e ao americano em particular. As críticas positivas, por outro lado, aclamam o tom sombrio do filme e a atuação poderosa de Joaquin Phoenix como divisores de águas para o fervilhante universo dos filmes baseados em quadrinhos. 

Nem lá, nem cá, Joker é de fato um feito extremamente competente a que, contudo, falta um toque de genialidade (esse traço fugidio que ninguém sabe explicar, apenas reconhecer). Depois de a trilogia aberta por Batman Begins (de Christopher Nolan, cujos filmes saíram em 2005, 2008 e 2012) ter se tornado a pedra fundamental do universo DC e, mais que isso, o paradigma de todos os filmes de super-heróis desde então, era natural que um filme solo sobre o mais icônico dos vilões fosse realizado. É impossível não imaginar, porém, como o filme teria saído com Heath Ledger encarnando mais uma vez o Palhaço do Crime. A comparação é inevitável (apesar da tentativa de Jared Leto no meio do caminho): Joaquin Phoenix é um ator muito mais encorpado, digamos, e fez um trabalho impressionante, mas Ledger se casou com o personagem num encaixe tão sobrenatural que talvez, numa interpretação abertamente romântica, isso tenha lhe custado a vida. Claro que Ledger foi dirigido por Nolan enquanto Phoenix foi dirigido Todd Philips (talvez esteja aqui o tal elemento de genialidade?); ainda assim, convenhamos: sem The dark knight, Joker provavelmente nem existisse.

O mergulho na psicologia dos heróis e vilões faz um contraponto interessante às longas sequências de ação em CGI que recheiam muitos arrasa-quarteirões inspirados em quadrinhos. Entretanto, a transposição dos personagens desenhados (as primeiras histórias de Batman em revistas eram surpreendentemente inocentes, tanto nos conflitos quanto nos recursos visuais; os tempos também eram mais simples: a revista Batman #1, de 1940, custava 10 centavos de dólar) para a tela com tintas de realidade para servir a discussões profundamente humanas não aconteceu do dia para a noite. 

Entre a icônica série de TV que contava com um Batman barrigudo e um Robin falastrão, representações do homem-morcego que passaram por Michael Keaton, Val Kilmer, George Clooney, Christian Bale e Ben Affleck, bem como Tim Burton e Joel Schumacher em uma longa tradição de linguagem altamente cartunesca (o Joker de Jack Nicholson, por exemplo, nada tem a ver com os de Ledger, Leto e Phoenix, a não ser a paleta de cores), em 2005 chegamos finalmente a Christopher Nolan e a maturidade de um personagem que nos gibis já estava bem dark há muitos anos. Depois disso, foi impossível ignorar esse potencial de incursões a lugares sombrios da alma humana que os embates entre o bem e o mal, durante décadas, abordaram de maneira simplista e, até, maniqueísta. 

Joker é, sem dúvida, a grande realização desse potencial. Alegoria do drama do homem contemporâneo que não tem o alívio de um privilégio, tendo Gotham como arquétipo da cidade acometida pela crise pós-moderna, o filme retrata o breakdown de um tal Arthur Fleck como produto das engrenagens e contingências da vida social urbana. Para nós, sobreviventes no século XXI, não é difícil reconhecer muitos dramas ali como genuínos e urgentes. O deslocamento para o mudo real se dá através da aproximação a esse homem que vem a personificar o mal: sua trajetória é hipnotizante e nos diz algo importante sobre a sociedade e a natureza humana (traços inequívocos de boa arte, pra contrariar o que Scorsese e Coppola têm dito por aí?). 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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