O pintassilgo

“Porque — e se aquele pintassilgo em particular (e ele é muito particular) jamais tivesse sido capturado ou nascido em cativeiro, exposto em alguma casa onde o pintor pudesse vê-lo? Nunca se entenderá por que ele foi forçado a viver em tal miséria — desconcertado pelo barulho (como imagino), afligido por fumaça, cães latindo, cheiro de comida, importunado por bêbados e crianças, impossibilitado de voar pela mais curta das correntes. No entanto até uma criança pode ver sua dignidade — um dedal de coragem, todo penas estufadas e ossos frágeis. Não se mostra tímido, nem mesmo desolado, mas firme, mantendo sua posição. Recusando-se a recuar diante do mundo.”

O pintassilgo é daqueles livros bem escritos, capazes de agarrar o leitor da primeira à última página (e olha que são 719 nesta bonita edição da Companhia das Letras). A história de Theo Decker flerta com o improvável, mas apenas naquela medida que garante o fino equilíbrio da verossimilhança na ficção. Além disso, se você parar pra pensar, a própria existência (no sentido mais lato da palavra) tem tantos traços de improvável que abrir o jornal de manhã ou olhar pro céu de madrugada são coisas que exigem da mente um firme pacto de simples aceitação.

Mas o melhor do livro não é a escrita da Donna Tartt (que é excelente, simples e precisa) nem a história (que Stephen King afirmou ser “um extraordinário trabalho de ficção”). Tampouco são os personagens o grande trunfo da autora (e são bem construídos; até aqueles mais unidimensionais, como Xandra, a madrasta de Theo: todos servem à história e emergem dela, coisa que só bons autores conseguem fazer). O melhor do livro é a reflexão sobre a arte que ele promove de maneira muito sutil. Pensamos estar acompanhando a trajetória de Theo Decker, um menino que perde a mãe num ataque terrorista aos 13 anos de idade, mas se olharmos mais de perto perceberemos camadas subjacentes à ação imediata. (Tem uma cena muito legal no filme Girl with a pearl earring em que o Vermeer de Colin Firth ensina umas técnicas de pintura para a Griet de Scarlett Johansson, e em que ela fala: ” as cores estão todas erradas” e e ele responde que não, que aquela era apenas a primeira camada de tinta, a que definirá luzes e sombras depois de aplicadas as camadas finais; neste romance, Donna Tartt trabalhou em camadas assim como um pintor barroco). Por isso, o que vem à tona no final do livro não é afeição ao protagonista ou ao seu percurso, mas um carinho (que inclusive, me fez terminar o livro chorando) pela pequena pintura em madeira do século XVII que dá nome ao livro.

Comecei o post falando do improvável e terminarei do mesmo jeito: que Fabritius, professor de Vermeer, tenha deixado à posteridade apenas um punhado de obras, por conta de um incêndio em seu estúdio, é a realidade impondo sua infalível dose de drama. Que Donna Tartt tenha usado esse episódio de maneira a ressignificar um outro tempo, que viria séculos depois, é a realidade ecoando o que a humanidade tem de melhor.

Obs.: Michiko Kakutani, a temível crítica de literatura do New York Times, achou o livro “brilhante, um romance glorioso”. Já o inglês James Wood, para a New Yorker, afirmou tratar-se O pintassilgo de “um livro infantil para adultos”. Claro que é tudo uma questão de opinião (e a minha pende para a da Ms. Kakutani), mas fiquei pensando: se duas das maiores referências em crítica literária no mundo inteiro divergem tanto em suas análises, será que isso nos diz algo sobre O pintassilgo ou sobre a crítica literária?

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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