A volta do gato preto

Eu poderia transcrever páginas e páginas (além de primorosamente bem escrito, o livro é uma aula de história norte-americana), mas selecionei só o trecho abaixo porque o Luís Fernando é tão tão tão fofo! Erico morou nos Estados Unidos durante os meses finais da Segunda Guerra, a pedido do Departamento de Estado americano, dando aulas e palestras sobre literatura brasileira na Universidade da Califórnia em Berkeley. Foi a segunda vez que ele morou por lá, tendo sido a primeira (em 1941) devidamente relatada no seu Gato preto em campo de neve – que ainda não li mas que já está na fila de urgência. 

Neste A volta do gato preto, o criador de Santa Fé e da família Terra Cambará é tão preciso nas suas avaliações sobre política e cultura que em várias ocasiões acaba sendo até profético. O livro foi escrito entre 1944 e 1946 e ainda hoje, mais de cinquenta anos depois, sua ressonância está longe de esgotada e sua qualidade literária foi raramente equiparada. Menção especial aos capítulos em que ele narra seus afazeres diários junto com a família, em que ele fala sobre algum tema abordado por ele em palestra e, especialmente, os episódios em que ele perambula pelos estúdios e encontra as estrelas hollywoodianas da época. 

Não sei como um livro desses não é leitura obrigatória pra vestibular. Fica mulecadinha do ensino médio às voltas com A Moreninha e quetais, Macunaíma e afins, Auto da barca do inferno e etc., e tanta literatura mais esclarecedora e prazerosa por aí. Só no Brasil mesmo que um Erico Verissimo não é nada demais. Vocês têm ideia da magnitude da obra do Erico Verissimo? Os americanos o reverenciaram antes mesmo de ele lançar O tempo e o vento; os brasileiros sabem malemá quem é o Luís Fernando e geralmente é por causa de texto apócrifo recebido por meio de corrente de email. Segue, aliás, um trecho com participação dele:

“Estamos todos ao redor da mesa do breakfast. Luís olha para mim e diz:

– Pai, eu acho que tu ficavas muito bem fardado de tenente da Marinha.
– De onde veio essa ideia?

Ele dá de ombros.

– Não sei. Só pensei nisso…

Clara explica:

– Ah! Eu sei. Quase todos os meninos na escola têm pais ou irmãos no Exército ou na Marinha, e o Louie anda envergonhado porque és civil…

Isso me faz lembrar que ainda não me apresentei à junta de alistamento do distrito. Faço-o hoje mesmo e recebo o meu cartão militar. Sou classificado como 4-A, isto é, casado, com filhos e maior de 36 anos.

À hora do almoço mostro o cartão a Luís e explico-lhe tudo.

– Então não foste aceito?
– Não é bem isso, meu filho. Não serei chamado agora. Só os I-A que vão para o Exército.

O menino nada diz. Limita-se a olhar para o cartão em silêncio.

– Pai.
– Que é?
– Estiveste na outra guerra?
– Não.
– Por quê?
– Era muito criança.
– E agora não entras nesta… porque estás muito velho?
– Bom, muito velho, não… quer dizer… é difícil explicar…

Mariana sorri. E eu me lembro duns versinhos que li há dias numa revista. Diziam que não há idade ideal para guerra; em nenhum tempo da nossa existência achamos que podemos deixar a vida segura e ir enfrentar a bomba, a bala e a baioneta. A última quadra era assim:

Como é possível uma escolha justa
Se a gente sempre vem a ser
Ou muito velho para a luta
Ou muito moço para morrer?'”

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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