O homem do castelo alto

A chave para se decifrar O homem do castelo alto, publicado originalmente em 1962 pelo norte-americano Philip Kindred Dick (mais conhecido como Philip K. Dick ou, para os fãs de carteirinha, PKD) é, de maneira muito borgiana, um livro inscrito no próprio livro. Para não dizer mais que isso e estragar uma surpresa literária fantástica, caso você ainda não tenha lido, vou dizer apenas duas coisas levemente vagas sobre esse ponto em particular: O gafanhoto torna-se pesado é um belo nome que, contudo, não podemos compreender perfeitamente; Ursula K. Le Guin costumava comparar Dick a Borges, O Borges. 

Nascido na cidade de Chicago, em 1928, Philip K. Dick foi contemporâneo dos gigantes da ficção científica do século XX: Asimov, Clarke, Huxley. Com mais de 40 livros publicados, entre romances e coletâneas de contos, tornou-se também um dos pilares do gênero e nos legou uma premiada obra em que figuram vultosos ícones pop, de Blade Runner a O vingador do futuro.

Este O homem do castelo alto parte de uma ideia aterradora e retrata um mundo em que o Eixo venceu a Segunda Guerra Mundial, ao invés dos Aliados. Nesse mundo, os Estados Unidos são política e culturalmente subjugados pelos alemães e japoneses, que ocupam cargos proeminentes em todas as instâncias da hierarquia americana. É claro que, sendo um exercício de imaginação de um homem norte-americano no pós-guerra, o livro apresenta certos conflitos que giram em torno da submissão a uma raça diferente e, aqui, o grande pesadelo é a queda da indústria americana (e, por conseguinte, os modelos de consumo como os conhecemos) e a morte da Grande Liberdade yankee, o heroico presente dos Estados Unidos ao resto do mundo. Temos também eventos aterrorizantes, como um grande genocídio na África promovido pelos nazistas, mas eles são mais parte da composição do cenário do que elementos centrais nos dramas dos personagens que acompanhamos. 

Certos núcleos da narrativa são mais dinâmicos que outros. A história de Frank Frink e, paralelamente, a de Juliana Frink e sua jornada rumo ao castelo alto, são mais interessantes que aquelas que têm como centro os oficiais do regime nipo-germânico. Algumas ideias geniais permeiam os acontecimentos: a ascensão de um novo führer e a crença irrestrita no i-Ching (em oposição às religiões ou à astrologia), por exemplo, compõem esse universo distópico ao mesmo tempo que contribuem para a evolução do enredo. (Um fato interessante é que o próprio Dick afirmou ter consultado o i-Ching repetidas vezes no processo de criação.)

Coroado com a surpresa final (a melhor coisa do livro) a que me referi no primeiro parágrafo deste comentário, O homem do castelo alto é leitura essencial para um mergulho em profundidade na melhor ficção distópica produzida no século passado. A bonita edição que a Aleph lançou este ano, com tradução de Fábio Fernandes, torna a leitura ainda mais agradável – se é que podemos usar essa palavra num texto em que mencionamos uma vitória nazista. 

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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