Interstellar

Há pouca diferença entre música e silêncio cósmico, se apenas o assombro for levado em conta. Certas vibrações que nos alcançam os ouvidos podem ser tão emocionantes quanto a ideia da ausência total de vibrações: talvez, o vasto reino do absoluto vácuo interestelar se irmane na poesia com o vasto reino da absoluta musicalidade de um Mozart. Afinal, a imensidão de espaços intergalácticos e a imensidão que existe no espaço de um crânio são igualmente inestimáveis.

Este novo filme de Christopher Nolan sonda toda a sorte de imensidões: de um buraco negro massivo chamado Gargantua à persistente saudade de casa; de um planeta varrido por tsunamis colossais (aliás, uma das melhores cenas que já vi no cinema em toda a minha vida) ao impulso poderoso de sobreviver. Com base em certo conceitos da física moderna, Nolan imagina a fuga de uma realidade humana apocalíptica: uma equipe ultrassecreta da Nasa está orquestrando a colonização de planetas habitáveis (foi descoberto um buraco de minhoca perto da órbita de Saturno que levará a expedição a planetas acolhedores em sistemas estelares distantes), pois a Terra convulsiona em seus espasmos finais. A comida se rarefaz, as colheitas são atingidas por pragas e tempestades de poeira e o diagnóstico geral é de que não há mais futuro para além de uma ou duas gerações.

Cooper, o piloto espacial interpretado de maneira irretocável por Matthew McConaughey, será o escolhido para guiar a expedição através do buraco de minhoca até os planetas previamente analisados e considerados minimamente promissores. Murph, a filha de Cooper, interpretada na infância pela ótima Mackenzie Foy, ficará na Terra com um sentimento de abandono que será canalizado para a ciência pelo dr. Brand (Michael Caine), idealizador do projeto de colonização.

Explorando a incrível realidade da relatividade, veremos o tempo galopar na Terra em relação à expedição que se aproxima de Gargantua e de sua enorme gravidade. A garota Murph crescerá para ser a brilhante dra. Cooper (encarnada pela sempre lindíssima Jessica Chastain) enquanto para seu pai o tempo não terá passado mais que dois anos. A ligação entre os dois, pai e filha, pautará toda a história e levará a um final tão emocionante quanto inacreditável.

Gravidade, ciência e transcendência, tridimensionalidade, não-continuidade do tempo e o bom e velho amor: tudo isso se arranja na narrativa de maneira tal que a todo tempo nos lembramos e nos esquecemos de que somos organismos cosmicamente insignificantes originários de um mote of dust suspended in a sunbeam* (e lembrei agora daquela linda cena de Contato – que inclusive tem também o McConaughey – em que Jodie Foster/Ellie Arroway contempla uma galáxia e chora de beleza para si: “deveriam ter enviado um poeta”). Chorei quatro vezes durante Interestelar.

É um lindo filme (e li por aí algumas críticas especializadas denunciando certa inexatidão científica, mas acredito sinceramente que um pouco de liberdade dramática em favor de uma história essencialmente humana não pode ser condenada, levando em conta o resultado final) que reúne também Anne Hathaway, Casey Affleck, Wes Bentley, Topher Grace, John Lithgow, Ellen Burstyn e Matt Damon, além da infalível competência de Christopher Nolan.

Quando Cooper passa a seu companheiro de nave um iPod reproduzindo sons terrestres (mar, pássaros, chuva), pode-se detectar uma espécie bem particular de declaração de amor. Amor pelo outro, amor pela Terra. O que Christopher Nolan faz ao nos presentear com este filme é exatamente o mesmo.

*“(…) Look again at that dot. That’s here. That’s home. That’s us. On it everyone you love, everyone you know, everyone you ever heard of, every human being who ever was, lived out their lives. The aggregate of our joy and suffering, thousands of confident religions, ideologies, and economic doctrines, every hunter and forager, every hero and coward, every creator and destroyer of civilization, every king and peasant, every young couple in love, every mother and father, hopeful child, inventor and explorer, every teacher of morals, every corrupt politician, every superstar, every supreme leader, every saint and sinner in the history of our species lived there — on a mote of dust suspended in a sunbeam.” (Carl Sagan, Pale Blue Dot)

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

1 Comment

  1. Pedro
    13 de agosto de 2019

    Esse filme, meu dels. Ele é tão maravilhoso que eu não consigo falar sobre, já vocês fizeram com maestria, parabéns! A citação do Sagan foi a cereja do bolo.

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