Museu da Memória e dos Direitos Humanos

“O golpe contra o governo democraticamente eleito de Salvador Allende foi patrocinado por elites de negócios chilenas ameaçadas pela tendência de Allende para o socialismo. Foi apoiado por corporações dos Estados Unidos, pela CIA e pelo secretário de Estado Henry Kissinger. Reprimiu com violência todos os movimentos sociais e organizações de esquerda e desmontou todas as formas de organização popular (como os centros comunitários dos bairros mais pobres).” David Harvey – O neoliberalismo: história e implicações, p. 17

Ao descer na estação Quinta Normal, da linha verde do metrô de Santiago, é possível, logo de cara, ver uma das entradas do Museu de Memória e Direitos Humanos. O museu, inaugurado em 2011 pela então presidente Michelle Bachelet, tem entrada gratuita, um amplo espaço de exibição (inclusive multimídia, inclusive interativa) e um acervo organizado de maneira dramática: o objetivo é claramente manter viva a ferida de uma ditadura militar que durou 17 anos e que até hoje (a exemplo das mais recentes movimentações em terras brasileiras mesmo) divide o Chile.

Desde a redemocratização do país, em 1990, talvez não tenha havido um momento em que fosse mais necessária a discussão sobre garantias fundamentais violadas e a memória de crimes hediondos do general Pinochet (que, vale lembrar, saiu do poder através de um plebiscito vencido por 56% a 44% – uma margem pequena para um regime sanguinário que torturou 30.000 pessoas, não?). A fresca ascensão do que convencionamos chamar de “direita” (explico as aspas: as crises de identidade da classes médias que emergem no pós-guerra no contexto do capitalismo globalizado das democracias neoliberais dão origem ao fenômeno do “assalariado capitalista”, ou seja, do trabalhador que consegue pagar seus boletos e, por isso, se acha rico e na posição de se sentir representado por políticos advindos das oligarquias tradicionais – o famoso “pobre de direita”, a maior arma dos capitalistas neoliberais; por isso, a terminologia esquerda-direita deverá ser revista por sociólogos futuros a fim de dar conta do fenômeno) em todo o mundo ocidental denuncia o que Bolaño cristalizou em palavras da seguinte maneira: “a memória coletiva é talvez uma das mais débeis, das mais fracas memórias que podem existir. Nunca se deve confiar na memória coletiva”. 

Ninguém justifica os desmandos e horrores das ditaduras (de direita e esquerda, é claro; tenho horror igual a Pinochet e a Ceausescu) pela violência em si. Há sempre ideais nobres a serem buscados e protegidos: a família, a estabilidade econômica, a erradicação do comunismo/imperialismo que espreita nas sombras. Em Mein kampf, o próprio Hitler escreve: “os direitos humanos estão acima dos direitos do Estado”. Em palavras de José Damião de Lima Trindade: “Foi sobre ideais de democracia e liberdade que os militares brasileiros erigiram, por meio do AI-5, um dos regimes que mais crimes contra os direitos humanos cometeram em toda a história nacional”. 

Todo ditador se acha um messias, um libertador, e nenhum ditador tem apoio popular após discursar bradando pela tortura de três mil pessoas (quer dizer, com exceção de Bolsonaro): o real terror das ditaduras se dá nos palanques em nome de Deus e em seguida nos porões em nome da ordem.

Por isso, um momento como esse exige uma reflexão mais profunda. Um momento em que chilenos e brasileiros compartilham uma memória difusa e nebulosa de regimes autoritários assassinos, em que a própria ideia de “direitos humanos” entra na lambança de conceitos dessas classes médias pseudo-esclarecidas, subintelectualizadas em sua educação tecnicista (“direitos humanos” não é botar ladrão na rua pra ele fumar maconha, virar professor e ensinar kama sutra pra criancinhas bebendo em mamadeira de piroca; “direitos humanos” são conquistas seculares que garantem até ao bolsominion mais encardido que ele não será esquartejado ou preso perpetuamente sem julgamento com ampla defesa só porque ele parou o Cruze financiado dele em lugar proibido, por exemplo).

Um momento como esse, em que uma quantidade alarmante de brasileiros têm pedido a volta da ditadura militar, exige que pensemos mais e melhor. Uma versão desse Museu de Memória e Direitos Humanos, no coração da maior cidade do Chile, talvez fosse cair bem no Brasil; talvez nos ajudasse a lembrar. 

Obs.: Dentro do museu há uma ilha de estantes, uma pequena livraria 🙂

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

1 Comment

  1. Pedro
    13 de agosto de 2019

    Memórias necessárias de serem (re)contadas nos tempos sombrios que vivemos.
    A sala do último andar com as velas no chão e a vista para as fotos dos cidadãos que tiveram a vida ceifada pelo autoritarismo despótido é um fio de humanidade no tecido social doente no qual vivemos.

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