Sobre o autoritarismo brasileiro e Brasil: uma biografia

Na ocasião do lançamento de Brasil: uma biografia, lembro de ter corrido afobadamente numa quarta-feira de manhã até a Fnac (descanse em paz, aliás) para garantir um ingresso para a tenda dos autores na Flip, onde Lilia e Heloisa falariam. Perguntei para a atendente se ainda havia ingressos, ao que ela respondeu, um tanto surpresa, que havia, sim: aquele era o primeiro que ela vendia. Fiquei ao mesmo tempo aliviada por ter garantido minha entrada e intrigada pelo que me pareceu um disparate: como assim os ingressos para ver Lilia Schwarcz falar sobre seu lançamento não estavam perto de esgotar? Quando relatei o causo para minha irmã, ela rachou de rir e disse que Lilia na Flip não era exatamente Justin Bieber no Allianz Parque.

De qualquer maneira, aquela mesa lotou e as autoras falaram sobre seu processo de criação e pesquisa, carimbando o lançamento desse que, desde o momento em que chegou às lojas, se tornou referência em livros sobre história do Brasil. (Além disso, fiquei na fila pro meet & greet e consegui autógrafos com dedicatórias personalizadas.)

Com um tratamento a que só mesmo a dona da Companhia das Letras teria direito, o livro mostra suas ambições desde o projeto gráfico: 792 páginas, um robusto arquivo de imagens e dez opções de capas. O escopo também não fica atrás, já que as autoras tratam de todos os períodos da nossa história, do pré-colonial às crises pós-redemocratização, apoiadas em vasta bibliografia (sem contar a experiência em sala de aula: Lilia é professora titular do Departamento de Antropologia da USP e Heloisa, do Departamento de História da UFMG). O título também é ousado e se explica pela intenção das autoras de tratar o Brasil como um personagem, cuja vida se pode entender através de certos eventos capitais.

Em seu trabalho mais recente, Sobre o autoritarismo brasileiro, lançado na semana passada, Lilia diz ter usado muitos resultados de pesquisas que foram feitas para Brasil: uma biografia, com o objetivo de costurar uma abordagem diferente. De fato, é possível ver fragmentos de seu catatau nessa análise mais enxuta, mas o tom de denúncia agora é mais evidente e seu convite é claro desde o capítulo introdutório:

“Portanto, a quem não entende por que vivemos, nos dias de hoje, um período tão intolerante e violento; a quem recebe com surpresa tantas manifestações autoritárias ou a divulgação, sem peias, de discursos que desfazem abertamente de um catálogo de direitos civis que parecia consolidado; a quem assiste de arquibancada ao crescimento de uma política de ódios e que transforma adversários em inimigos, convido para uma viagem rumo à nossa própria história, nosso passado e nosso presente.” (p. 25)

Passando por todos os períodos da nossa história “pós-invasão” (pois Lilia desafia as narrativas tradicionais a ponto de dizer que isso que convencionamos chamar de descobrimento nada mais foi que a invasão de um território densamente povoado, seguida por um incalculável genocídio) e com foco nas relações sociais e de poder que foram estabelecidas desde que o primeiro índio avistou a primeira caravela, a autora discorre sobre como certas idiossincrasias e certos mitos recorrentes colaboraram e ainda colaboram para a nossa incapacidade de resolver nossos problemas estruturais.

Como resolver nossos problemas se, antes de mais nada, consistentemente falhamos em reconhecê-los? A interpretação errônea do conceito de homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, serviu e ainda serve para fortalecer a noção absurda de que somos uma sociedade histórica e essencialmente pacífica: se por mais de trezentos anos tivemos uma situação de escravização de milhões de seres humanos em todo o nosso vasto território, como podemos sequer começar a falar em uma história pacífica? Interessante notar que, nos dois livros, os termos usados são “escravizados” e “escravizadas”, ao invés do mais impessoal “escravos”: não há nada de impessoal na escravização de seres humanos e há que se jogar luz sobre o pólo agente dessa relação perversa. A autora assevera com lógica que, enquanto não pudermos entender as raízes da nossa violência, não conseguiremos chegar a soluções de pacificação eficazes. Através de uma sequência de capítulos muito bem desenhada, ela debruça sobre questões de racismo, mandonismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, raça e gênero para enfim tecer seu muito bem-informado painel cuja figura maior mostra a cara do autoritarismo, essa mazela constante nas sociedades não emancipadas politicamente.

Esse novo livro de Lilia Schwarcz, além de proporcionar uma leitura instigante e prazerosa, produzida por uma das mentes mais ativas da academia brasileira e de todo o mercado editorial contemporâneo (ela é uma antropóloga que escreve sobre Lima Barreto, Euclides da Cunha, história do Brasil, história do racismo e da escravização, milita contra o racismo, edita, palestra e ensina: que mulher, meus senhores!), é uma voz firme destoando das fábulas de colonizadores que aprendemos desde cedo na escola. É a voz de uma mulher poderosa na linha de frente de um projeto imenso que começamos agora, mas que é capaz de mudar o mundo: a redescoberta da história e do próprio pensamento. (Aliás: o mundo seria um lugar bem diferente se pessoas como Lilia Schwarcz de fato lotassem o Allianz Parque.)

Sou cientista social e antropóloga formada pela Unicamp. Sou pós-graduada em Gestão Escolar pela USP-Esalq e sou professora/coordenadora em uma escola internacional. Tenho muitas paixões, de caderninhos de anotações a corrida de rua, de Jorge Luis Borges a RuPaul's Drag Race, de Iga Swiatek a água com gás. Sou autora de Quarto mapa (2021) e Hi-fi da tarde e haicais noturnos (2023).

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